Vamos falar de educação?

28 de abril de 2021 Processocom

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Publicas

Texto por Vitória Santos

O dia internacional/mundial da educação é celebrado em duas datas:

– 24 de janeiro, definido pela Assembleia Geral das Nações Unidas como o dia em que devemos olhar para a educação como papel fundamental para a paz e o desenvolvimento;

– 28 de abril, data definida no último dia do Fórum Mundial de Educação, que foi realizado em Dakar (Senegal), em 2000. Naquele dia ficou estabelecido pelos mais de 150 países presentes o compromisso de levar educação básica e secundária a todas as crianças e jovens do mundo.

Mas o importante nesse momento não é falar sobre qual o dia certo da comemoração, e sim debater sobre o tema. O Brasil passa atualmente por um momento de ruptura, essa que se reflete diretamente no campo educacional, e muito disso se dá porque não conhecemos a nossa história e nem entendemos a nossa lógica política, o que faz com que a sociedade incorra em erros de avaliação sobre sua própria situação. Os acontecimentos atuais [1] podem ser explicados pela ordem social, cultural e política, todas elas com variáveis diferentes e tendo que ser analisadas de forma distintas, sendo a política a que requer uma explicação mais estrutural. Não tenho pretensão aqui de fazer uma análise complexa da conjuntura política atual. Mas me proponho a refletir sobre alguns fatores que acredito fazerem parte desse “momento histórico” vivido e que se refletem no contexto da Educação, principalmente na Educação Básica.

Volto um pouco no tempo histórico a fim de reconstruir brevemente os passos da estrutura da educação no Brasil, assim como, o surgimento do movimento denominado Escola Sem Partido, que acredito serem importantes para compreendermos essa manifestação e os processos de tomadas de decisão que afetam a educação. Processos esses que desfavorecem e perseguem grupos sociais, além de colocarem em dúvida o profissionalismo e a formação dos/as docentes.

Se pensarmos na história da educação no Brasil, temos como mapeá-la através dos tempos de uma forma concreta, pois ela está marcada por períodos muito bem delineados de rupturas “políticas”. Usando a linha de raciocínio de Bello (2001), temos, primeiramente, a chegada dos portugueses. Passamos, depois, por um período de aproximadamente 200 anos de um ensino Jesuítico (1549 – 1759). Depois vem a era Pombalino (1760 – 1808), o Período Joanino (1808 – 1821) e o Período Imperial (1822 – 1888). É nesse último período que em 1824 temos a primeira Constituição brasileira, que traz em seu Art. 179 o seguinte: “instrução primária é gratuita para todos os cidadãos”. Logo após, temos o Período da Primeira República (1889 – 1929), depois o Período da Segunda República (1930 – 1936), e é em 1930 que se cria o Ministério da Educação e Saúde Pública. Em 1931, o Governo provisório sanciona decretos organizando o ensino secundário e as universidades brasileiras ainda inexistentes.

Em 1934, a nova Constituição coloca que “a educação é direito de todos, devendo ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos”. Chegamos ao Período do EstadoNovo (1937 – 1945). Nessa época, as leis regulamentadas tiram do Estado o dever da educação, mas mantêm a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário, assim como o ensino de trabalhos manuais em todas as Escolas normais, primárias e secundárias. Temos, na sequência, o Período da Nova República (1946 – 1963), quando se tem uma nova Constituição, que pela primeira vez determina a obrigatoriedade de se cumprir o ensino primário e dá competência à União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional e retoma a fala de que a educação é um direito de todos. Em 1946, é regulamentado o Ensino Primário e o Ensino Normal, além da criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). O país, então, sofre uma das suas maiores rupturas e entra no Período do Regime Militar (1964 – 1985).

O Regime Militar espelhou na educação o caráter antidemocrático [sic] de sua proposta ideológica de governo: professores foram presos e demitidos; universidades foram invadidas; estudantes foram presos e feridos, nos confrontos com a polícia, e alguns foram mortos; os estudantes foram calados e a União Nacional dos Estudantes proibida de funcionar. (BELLO, 2001, p. 5).

Entramos, 21 anos depois, no Período da Abertura Política (1986 – 2003).

No fim do Regime Militar a discussão sobre as questões educacionais já haviam perdido o seu sentido pedagógico e assumido um caráter político. Para isso contribuiu a participação mais ativa de pensadores de outras áreas do conhecimento que passaram a falar de educação num sentido mais amplo do que as questões pertinentes à escola, à sala de aula, à didática, à relação direta entre professor e estudante e à dinâmica escolar em si mesma. (BELLO, 2001, p. 5, grifo nosso).

Repassando brevemente essas rupturas que o Brasil sofreu enquanto Estado, e o quanto elas afetaram e retardaram o processo de avanço da nossa educação, conseguimos perceber como a Escola/educação está inserida em um processo de mediação constituinte da formação social dos/as sujeitos/as. Principalmente, como fator determinante das oligarquias de poder, que se fazem valer das instituições de ensino e das políticas públicas de Governo para continuarem dominando as formas e as maneiras hierárquicas que ainda temos de se fazer educação.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9694 foi instituía em 1996, e tem como pressupostos básicos regulamentar a educação brasileira em todos os seus níveis. (BRASIL, 1996). Nesses últimos 25 anos de Lei, muitas alterações foram feitas no seu conteúdo, afinal, o país se modificou e muitas coisas precisavam ser revistas. Nem todas as alterações foram boas para o campo educacional, outras tantas deveriam ter sido feitas pelos governantes e não foram, já que no Brasil, na área da educação, poucas vezes tivemos propostas de Estado e sim políticas de Governo.

Muitas das ações afirmativas que se tornaram emendas na LDB surgiram das pautas dos movimentos da sociedade civil. Quando Bello (2001) cita o início de um processo de pensamento de que a Escola estava para além dos conteúdos programáticos, e que ali se formavam sujeitos/as que precisavam ter ciência da sua própria vida e noção do seu entorno, isso era posto dentro das Leis que regem a educação, como uma conquista, um momento de início de superação da lógica hierarquizante imposta aos currículos, pensando então em uma formação integral dos/as sujeitos/as.

Porém, alguns movimentos da sociedade civil criaram imaginários sociais que reverberaram e tiveram eco nas pessoas que não conseguem, de certa forma, fazer uma leitura de mundo. Somos o 2º país do mundo que menos conhece a sua realidade [2] e se não conhecemos nossa realidade, a nossa história, estamos fadados a repeti-la. “A convicção de que a consciência que os homens de determinada época têm da sociedade em que vivem não coincide com a realidade social da época em questão.” (CARDOSO, 1997, p. 13).

“O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva.” (BACZKO, 1985, p. 309). Talvez, nesse momento em que vivemos, o imaginário construído seja a ideia de doutrinação ideológica, por parte das Escolas e das/os professoras/es, e que tem gerado uma caçada contra aquilo que alguns defendem como “doutrinação de esquerda”, e aqui entra o entendimento deles sobre Direitos Humanos como um processo social, pertencente a uma vertente política e que nos últimos anos ganhou notoriedade como se fosse uma pessoa: o “tal dos Direitos Humanos”.

Isso é personificado e significado através do projeto mais discutido no que concerne essa questão, que é o Projeto Escola Sem Partido, que surge em 2004, mas ganha força em nível nacional a partir de 2014, quando começa a tramitar na Comissão Especial da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 7.180/14. Em suma, o projeto propõe que a LDB inclua um novo inciso (item) no seu artigo 3º, que estabeleceria os valores de ordem familiar sobre a educação escolar em temas relacionados à Educação Moral, Religiosa e Sexual.

Podemos pensar que, após todas as rupturas sofridas pelo processo educacional brasileiro, sua precarização e a baixa valorização das professoras e dos professores, não estaríamos, em pleno século XXI, debatendo ideias retrógradas e vivendo processos de perseguição às/aos docentes por algo denominado como a necessidade de uma Escola Sem Partido. Nome esse que me incomoda profundamente pela sua distorção semântica, já que o título nos leva a pensar que existe uma “Escola com Partido”, e eu perguntaria: que partido é esse? Um partido político? Ou um partido ideológico? Ou talvez isso seja só uma ideia de não perder o poder? De continuar legitimando discursos de opressão e de ódio?

Não há, em níveis acadêmicos, nenhuma pesquisa que comprove que as Escolas brasileiras estejam mais ou menos alinhadas a alguma posição político-partidária de alguma vertente ideológica. O projeto do Escola Sem Partido nasce de movimentos da sociedade civil e ganha eco e reverbera nos meios digitais através do grupo denominado Movimento Brasil Livre (MBL). Assim como há uma articulação social para colocar em prática nos municípios do Brasil a “Escola sem Partido”, há outros tantos grupos que lutam pela Escola Sem Mordaça, moção e movimento de repúdio ao Escola Sem Partido.

Nem sempre as organizações civis estão em busca daquilo que Mattos (2012, p. 100) denomina como “ampliação de direitos de grupos relativamente desprivilegiados”. O que presenciamos, principalmente ao longo desses últimos anos e que tem ganhado mais forma após 28 de outubro de 2018, é uma lógica de amedrontamento e dominação por meio das estruturas e lideranças políticas que dominam o país, juntamente com movimentos que se articulam não para o benefício dos mais desprivilegiados, e sim para uma manutenção e retomada de uma lógica operante hegemônica que no Brasil é composta por cis, héteros, brancos, de classe média alta.

O povo, as pessoas que estão submetidas a esse padrão hegemônico heteronormativo citado, precisa se organizar enquanto resistências coletivas, lembrando sempre suas individualidades, afinal, a sociedade brasileira é estruturalmente desigual, e, portanto, alguns corpos têm menos valor do que outros. Neste momento, os Movimentos Sociais precisam fazer mobilizações “que podem ser pensadas como uma expressão das contradições e hierarquias específicas da sociedade estudada” (MATTOS, 2012, p. 100), que nesse caso é o Brasil, onde a desigualdade atinge status de coisa natural, e necessita de movimentos como o Feminista, o LGBTQIA+, o Movimento Negro e demais movimentos das maiorias minorizadas para que as políticas de ações afirmativas educacionais conquistadas pelas lógicas civis, a tão alto preço, continuem ressignificando o lugar social historicamente atribuído às pessoas.

Digo isso pensando que não queremos ver mais perseguição contra professoras/es, em uma tentativa de um apagamento dessas lutas e desses tempos vividos, para contar uma nova história, principalmente feita do ponto de vista dominante, um ponto de vista que está na base da Lei “Escola Sem Partido”. E a única forma que tenho visto e pensado sobre é através de articulações sociais que garantam os espaços de diálogo e de fala.

O Plano Nacional de Educação (PNE), estabelecido em 2014, nos apontou diretrizes e metas para uma política educacional até 2024 e formas para pesar essas articulações. Cito aqui duas de extrema relevância:

– a elevação da taxa de alfabetismo;

– e a universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos.

Metas que ainda não foram cumpridas, conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada em 2019, que mostrou que ainda há em nosso país 11,3 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que ainda não foram alfabetizadas, o que corresponde a 6,8%. Entre a população negra o percentual é de 9,1% em relação a 3,9% da população branca iletrada com 15 anos ou mais.

Por que cito essas duas diretrizes para encerrar essa reflexão? Porque elas estão diretamente relacionadas com a forma como o país tem lidado com a educação básica e a sua população, afinal, elas mostram a dívida histórica educacional que temos com a população negra, demonstram a desigualdade social na qual o país está imerso e nos fazem pensar no processo interseccional (gênero, raça e classe social) que perpassa o contexto educacional brasileiro e que é constantemente atacado por defensores de projetos como o Escola Sem Partido.

Notas

[1] Refiro-me aqui à recente crise das lógicas políticas que levou ao processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff em 2016 e à recente eleição de Jair Messias Bolsonaro para presidência da república a partir de janeiro de 2019.

[2] O primeiro colocado é a África do Sul, segundo a pesquisa “Os perigos da Percepção 2017”. (CALEGARI, 2017).

Referências

BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

BELLO, José Luiz de Paiva. Educação no Brasil: a História das rupturas. Pedagogia em Foco, Rio de Janeiro, 2001.

BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Institui as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996.

CARDOSO, Ciro. História e paradigmas rivais. In: Cardoso, Ciro F.; Vainfas, Ronaldo (Org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

CALEGARI, Luiza. Brasil fica em 2º em ranking de ignorância sobre a realidade. Exame, São Paulo, 6 dez. 2017. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-fica-em-2o-em-ranking-de-ignorancia-sobre-a- realidade/. Acesso em: 27 abr. 2021.

MATTOS, Hebe. História e movimentos sociais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 95-111.

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