A imensa sabedoria das pedras

7 de maio de 2018 Processocom

Ricardo Machado

O homem, que é uma categoria distinta de ser humano, ao estabelecer a Revolução Copernicana não simplesmente retirou a terra do centro do universo, mas, também, transformou o próprio umbigo no centro de todas as coisas. Havíamos, com a Modernidade (apesar de sua promessa iluminista nunca ter se realizado), “libertado-nos” do teocentrismo para nos tornarmos autocentrados. Precisou, contudo, chegarmos ao século XX para nos darmos conta que a nossa magnânima sapiência era mediada, há mais ou menos cinco mil anos, pelas pedras. Não fossem as pedras, essa extraordinária criatura, o homem, não teria se tornado o centro da vida cósmica, a mais bem acabada empresa, seja por criação divina ou por evolução biológica.

Pois sobre as pedras, valho-me de uma provocativa descrição de Michel Serres, uma vez que não poderia dizê-las melhor, tampouco com tanta brevidade.

“O povo de Israel entoa salmos frente ao muro desmantelado das lamentações: do templo não sobrou pedra sobre pedra. O que viu, o que fez, o que pensou o sábio Tales frente às pirâmides do Egito, em uma época tão antiga para nós quando o nome de Quéops era arcaico para ele, por que ele inventou a geometria frente a este amontoado de pedras? O Islã inteiro sonha viajar para Meca onde está conservada, na Caaba, negra, a pedra. A ciência moderna nasce, na Renascença, a partir da queda dos corpos: caem as pedras. Por que Jesus fundou a igreja cristã sobre um homem cujo nome era Pedro? Misturo a vontade das religiões e conhecimento nestes exemplos de instauração” – Michel Serres, Statues (1987), pág 213

Mas afinal de contas, o que as pedras têm a ver com a Comunicação? Ainda que os exemplos acima sejam autoexplicativos, o que nos interessa particularmente é pensarmos como seres não-humanos são capazes de articular significado e de mobilizar ações. As pedras no sentido do texto habitam uma espécie de não-lugar, porque, de fato, são não-humanos, mas ao mesmo tempo não têm a qualidade de objetos puros. No fundo, as pedras do judeus, dos cristãos, dos muçulmanos e dos cientistas são, como diria Latour, “quase-objetos”, porque residem no ínterim entre uma certa humanidade [no sentido que possuem uma intencionalidade, afinal o muro das lamentações ergue pedra sobre pedra na argila do “povo escolhido” (sic)] e uma “coisidade”.

De um lado os estudos da Comunicação contemporâneos passaram a concentrar seus esforços nas “pedras”, ainda que sejam mais sofisticadas, é verdade (os computadores nada mais são que um conjunto variado de minérios), com as pesquisas da cibercultura, tentando compreender certos agenciamentos não-humanos. De outro, a maior parte desses pesquisadores esqueceu de consultar os povos que nunca se nutriram da crença de que o homem seria o centro do universo. Refiro-me aos ameríndios (povos tradicionais das Américas). Enquanto os pós-modernos reescreveram a modernidade com as tintas de suas impressoras domésticas e com isso multiplicaram ainda mais as controvérsias da razão iluminista, os não-modernos parecem ser os únicos que possuem caminhos de saída para um mundo em vias de extinção: o mundo em que os homens ao tornarem-se seu próprio centro, desencadearam uma catástrofe social e ambiental talvez irreversível.

Diante do fim do mundo (na verdade seria melhor dizer, “fim de um mundo”), é melhor perguntarmos para os indígenas, que sempre souberam ouvir as pedras, que caminhos podemos seguir, afinal são eles, os não-modernos, os únicos capazes de sobreviver em um mundo que não existe mais. O homem que descobriu o próprio umbigo como centro do universo, escreveu a primeira nota de nosso réquiem no dia 12 de outubro de 1492. Estamos prestes (ainda bem!) a escrever a última.

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