GLOSSÁRIO DA COMUNICAÇÃO
21 de julho de 2021 Renata Cardoso
Semiótica da Cultura: alguns conceitos (bem) básicos
Hoje começamos uma nova editoria aqui no site, o Glossário da Comunicação. A ideia é trazermos de forma simples e direta alguns conceitos que permeiam o nosso campo, longe de esgotar as discussões sobre os assuntos que vamos abordar. Começamos com um tema que é bem complexo, mas que também desperta muito interesse: a Semiótica da Cultura. Vamos lá?
A Semiótica da Cultura é uma corrente teórica que emerge por volta da década de 1960, na então União Soviética. As discussões trazidas por expoentes pensadores da época, como Iuri Lótman, Vyacheslav Ivanov e Boris. A. Uspenskij na denominada ”Escola de verão sobre os sistemas modelizantes de segundo grau”, que acontecia na Universidade de Tartu, na Estônia, buscavam compreender a comunicação como um sistema semiótico, e a cultura como uma trama complexa e sofisticada de sistemas de signos que se organizam de diversas formas e atuam como processo na formação da humanidade, e não como produto dela.
No âmbito dessas discussões, os signos configuram a semiosfera, o ambiente no qual esses sistemas “habitam” e entram em contato entre si, gerando novos textos a partir das traduções que acontecem em suas fronteiras, ou seja, em seus pontos de permeabilidade. Essa corrente tem uma visão sistêmica de cultura, e busca observar o processo de formação dos diferentes sistemas que a constituem.
Essa corrente abrange um legado enorme de discussões, que se dobra sobre aspectos sociais, filosóficos, tecnológicos que, de alguma forma, têm influência sobre a produção sígnica de determinada cultura e dão conta dos processos de significação e de comunicação de um grupo social; isto é, tenta entender como são os registros, as representações da cultura nos diferentes suportes que ela dispõe e em diferentes momentos histórico-sociais. (VELHO, 2009, p. 250)
Para essa vertente dos estudos semióticos, os textos culturais (a noção de texto vem da raiz linguística da disciplina), são sistemas de signos organizados, que formam um conjunto de sistemas em rede. “Para essa corrente de pensamento, é importante compreender como um sistema traduz os outros sistemas e o contexto no qual isso ocorre.
Semiosfera
De acordo com Lótman, (1996, p. 12) “La semiosfera es el espacio semiótico fuera del cual es imposible la existencia misma de la semiosis.” Para o autor, o conceito de semiosfera está ligado a determinada homogeneidade e individualidade semióticas, conceitos que pressupõem o caráter limitado da semiosfera em relação ao espaço extrassemiótico que a rodeia.
Precisamente eso es lo que se halla en la base de la idea de la semiosfera: el conjunto de las formaciones semióticas precede al lenguaje aislado particular y es una condición de la existencia de este último. Sin semiosfera el lenguaje no sólo no funciona, sino que tampoco existe. Las diferentes subestructuras de la semiosfera están vinculadas en una interacción y no pueden funcionar sin apoyarse unas en las otras. En este sentido, la semiosfera del mundo contemporáneo, que, ensanchándose constantemente en el espacio a lo largo de siglos, ha adquirido en la actualidad un carácter global, incluye dentro de sí tanto las señales de los satélites como los versos de los poetas y los gritos de los animales (LÓTMAN, 1996, p. 20).
A semiosfera se desenvolve de forma heterogênea em seus diferentes setores. As fronteiras de seus inúmeros sistemas internos estão constantemente em contato, produzindo novas gerações de textos e de significados. Funcionam como órgãos em um corpo: ao mesmo tempo em que possuem seus contornos, características e funções internas, estão em profunda inter-relação com os outros. Essa inter-relação semiótica forma novos textos.
Falar de uma semiosfera é, de fato, como falar de um universo: é complexo, repleto de organizações menores e maiores, mais densas e mais simples. A semiosfera é o universo sígnico no qual estamos imersos: o constituímos e somos construídos neste e entre este espaço. Dentro dessa semiosfera estão os sistemas semióticos que na Cultura constituem as identidades pessoais.
Mesmo diante de tal complexidade, é possível descrever, organizar e analisar os diferentes sistemas que fazem parte dela, de modo semelhante ao feito na astronomia. De qualquer forma, apesar de uma descrição densa e sistemática das características e dos diálogos entre os sistemas, o resultado será sempre uma análise parcial, algo a que representa, sob determinado aspecto e em certa medida, uma vez que estamos falando de signos culturais.
Fronteiras
A fronteira é a zona de permeabilidade, mas também de contorno e delimitação dos conteúdos internos dos sistemas e das semiosferas. É um mecanismo primário de individualização semiótica construído por meio de diversos processos e capaz de entrar em contato com os demais sistemas, filtrando o que “entra” ou não, semiotizando (traduzindo, entendendo e recodificando), os conteúdos para seu sistema. Essa função de permeabilidade funciona de diferentes maneiras e em diferentes níveis. De acordo com Lótman,
La frontera del espacio semiótico no es un concepto artificial, sino una importantísima posición funcional y estructural que determina la esencia del mecanismo semiótico de la misma. La frontera es un mecanismo bilingüe que traduce los mensajes externos al lenguaje interno de la semiosfera y a la inversa. (1996, p.13 – 14)
Os diálogos semióticos só são possíveis nas fronteiras, que permitem traduzir o interno para o externo, adaptando a linguagem ao interlocutor. Porém, apesar de essa capacidade de tradução, a recepção, decodificação e ressignificação da mensagem será baseada no conteúdo prévio que o outro sistema já possui.
Puesto que el espacio de la semiosfera tiene carácter abstracto, no debemos imaginamos la frontera de ésta mediante los recursos de la imaginación concreta. Así como en la matemática se llama frontera a un conjunto de puntos perteneciente simultáneamente al espacio interior y al espacio exterior, la frontera semiótica es la suma de los traductores-«filtros» bilingües pasando a través de los cuales un texto se traduce a otro lenguaje (o lenguajes) que se halla fuera de la semiosfera dada. […] Para que éstos adquieran realidad para ella, le es indispensable traducirlos a uno de los lenguajes de su espacio interno o semiotizar los hechos no semióticos. Así pues, los puntos de la frontera de la semiosfera pueden ser equiparados a los receptores sensoriales que traducen los irritantes externos al lenguaje de nuestro sistema nervioso, o a los bloques de traducción que adaptan a una determinada esfera semiótica el mundo exterior respecto a Ella. (1996, p.12)
É importante destacar que os sistemas são mutáveis em seus contornos, apesar de definidos, são cambiantes e transformam-se com o tempo e com o contato com os demais sistemas. Quando se problematiza a questão cultural é importante pensar sobre os caminhos (nem lineares nem evolutivos) das manifestações culturais. Os hibridismos, produtos dos encontros/diálogos (vale ressaltar, nem sempre pacíficos ou saudáveis), dos diferentes sistemas semióticos que regem grades grupos humanos, não ocorrem apenas entre diferentes culturas com um “centro” (a questão de centro também é extremamente questionável) gerador distinto, mas também são frutos de imbricações entre novas e antigas influências, que surgem como algo novo, com conexões com seus sistemas geradores.
Traduções
A tradução é fundamental para a Semiótica da Cultura. Nessa corrente de pensamento, a tradução é um processo que acontece em diferentes níveis e de diferentes formas, e serve para que haja comunicação entre os diversos sistemas semióticos. Essas traduções podem ou não fazer com que sistemas explodam, o que acontece caso não preservem seu núcleo, apesar de o mais comum é entrar em diálogo com outros sistemas e ir se alterando aos poucos.
Conforme acontecem as traduções novos textos são gerados a partir do contato das informações dos sistemas anteriores, ou geradores. Na cultura isso acontece continuamente: sistemas são afetados e afetam uns aos outros, gerando novos textos e novas significações. Por isso, toda cultura precisa de uma não-cultura, para entrar em contato e criar novos códigos a partir dessa relação e assim se expandir. É importante frisar que um código jamais chega a um sistema do mesmo modo que saiu do outro. Traduzir é um processo dinâmico.
Pelo fato do espaço semiótico ter muitas fronteiras, cada mensagem que se move através dele é traduzida e transformada várias vezes. Tradução envolve receber, decodificar e recodificar códigos. Não se trata de tarefa simples, requer, pelo menos, que haja pontos de intersecção nas fronteiras dos sistemas que permitam a comunicação. Além disso, é necessário ter, para poder interpretar, algum conhecimento sobre o contexto daquele código, para, de posse dessas informações, ressignificar o código e dar sentido à informação a partir de conceitos, experiências, normas próprias. Esse processo não acontece de forma simples ou linear, é marcado por inúmeros atravessamentos.
Referências:
LOTMAN, Iuri. La semiosfera: Semiótica de la cultura y del texto. Ediciones Cátedra, S. A. Madrid, 1996.
MACHADO, Irene. Escola de Semiótica – A Experiência de Tártu-Moscou para o Estudo da Crítica. Ateliê, São Paulo, 2003.
VELHO, Ana Paula Machado, A SEMIÓTICA DA CULTURA: apontamentos para uma metodologia de análise da comunicação. In: Rev. Estud. Comun., Curitiba, v. 10, n. 23, p. 249-257, set./dez. 2009.