A culpa é da internet

22 de junho de 2021 Equipe Processocom

Foto: Mulher foto criado por rawpixel.com – br.freepik.com

O documentário “Dilema das Redes”, da Netflix, traz ex-funcionários das big techs Twitter, Facebook, Google e Pinterest para falar sobre mecanismos capazes de viciar usuários e influenciar o consumismo. Ao utilizar os sites de redes sociais, o público é exposto à publicidade e tem a possibilidade de assistir conteúdos semelhantes. Por exemplo, se curto um vídeo sobre culinária, o algoritmo irá me oferecer conteúdo semelhante àquele. Mas, ao nos aprofundarmos em como essas mídias funcionam, entendemos que elas são arquitetadas a partir de jogos de poder (GARSON, 2019, p. 62). Os seus usuários são produtos vendidos para grandes corporações que, por sua vez, só buscam uma coisa: lucro. O modo como funcionam facilita o controle dos usuários, como foi o caso das eleições de 2018 no Brasil e de 2016 nos Estados Unidos. A disseminação das fake news foi facilitada pois: 1) não havia controle algum do que era uma notícia falsa ou verdadeira e 2) a espalhabilidade da rede permitiu que esse conteúdo fosse disseminado rapidamente — além, é claro, das empresas contratadas para espalhar essas notícias falsas.

Ao pensarmos na forma orgânica de disseminação dessas mentiras, é interessante analisar como a era da cibercultura possibilitou a personalização e a seleção de ideologias aos indivíduos. Se antes os usuários estavam expostos a uma cultura de massa homogeneizante, agora eles podem escolher o que e quando consumir nos sites de redes sociais. Conforme Lemos (2004, p.20), “[…] O indivíduo não para de se constituir no que ele é já que a construção da identidade e da individuação é sempre aberta e coletiva, resultante de uma apropriação de singularidades […]”. Nesse sentido, podemos repensar em quão “singulares” são essas novas identidades. Essa construção aberta e coletiva facilita o trabalho das big techs, que mapeiam o tipo de usuário, o que ele quer consumir e como fazê-lo ficar mais tempo dentro da rede.

Também são oferecidos conteúdos que chamam a atenção do usuário e, geralmente, tem apenas uma perspectiva dos fatos — o que pode permitir a criação de bolhas na internet. Teorias da conspiração, polarização política e a ascensão da extrema direita são apenas alguns dos efeitos colaterais desses grupos fechados e da ação do algoritmo. O documentário exibe esse efeito quando trata da teoria da terra plana, por exemplo. Ao assistir um vídeo sobre o tema, outros vídeos parecidos serão exibidos a seguir, consolidando a visão que você está formando sobre o assunto.

Não creio, entretanto, que a melhor solução seja fazermos com a internet a mesma coisa que foi feita com a televisão. Apenas dizer que “é culpa do Facebook, ele nos manipula” é simplificar um problema — e um modelo de negócios — muito mais complexo. A teoria do balde vazio e da agulha hipodérmica já se mostraram ineficazes em retratar a realidade. Precisamos pensar que, no caso das redes sociais, a comunicação está acontecendo em um campo de input e output. O usuário dá informações pessoais, alimenta o sistema e em troca recebe mais conteúdos dos quais vai gostar. Existe um movimento do usuário — o de dar informações para o algoritmo — que altera a forma como esse sistema funciona. Conforme Pignatari (1981, p.52), não há intercâmbio de informação quando há redundância completa. Sem alimentar a mídia com mais informações, ela se torna semimorta, pois não há um processo de entropia ocorrendo. Ao acessar as redes e compartilhar informações, os usuários devem entender o que estão consumindo e a quem interessa que eles estejam naquele espaço. Como foi dito no documentário, essas redes podem servir como espaços de controle e poder (LEMOS, 2007, p. 4–5), inclusive entre instituições e países. Como, então, frear algo que atravessa as fronteiras físicas e pode criar guerras “invisíveis”?

As tensões que ocorrem no território do não-lugar são capazes de trazer novos significados para as mídias sociais. A desterritorialização acontece quando há o compartilhamento, a discussão e a criação de espaços colaborativos e criativos dentro das redes sociais. Ao transformar o Facebook em um espaço de crescimento intelectual/social, o território é ressignificado. O próprio usuário modifica o papel da rede e como ela atua, de certa forma. Sendo assim, é evidente que a comunicação sofre um processo que complexifica cada vez mais a sua formação comunicativa. Como disseram os profissionais no documentário, há um novo processo sendo formado a partir dos sites de redes sociais, e é preciso ter em mente que “uma nova formação comunicativa e cultural vai se integrando na anterior, provocando nela reajustamentos e refuncionalizações” (SANTAELLA, 2007, p.25–26).

Os novos modos de se comunicar vem com bagagens que pertenciam a suportes e culturas anteriores. Por ser um organismo vivo e inteligente, a comunicação sofre processos de adaptação constantemente. Exemplo disso são os novos ciclos culturais causados pelas mídias. No rádio, tínhamos um tipo de cultura vigente: os ouvintes firmavam compromissos com os radialistas, pois sempre estavam esperando a hora do programa começar. As mídias sociais também possuem características específicas. No documentário, isso foi exemplificado com a publicação de fotos com filtro para se sentir parte de uma comunidade. Além disso, é preciso que o grupo aprove, através de curtidas e comentários, o que você está compartilhando. Outro exemplo ilustrado no documentário é o flerte e amor juvenil, que agora acontece através de reações nas redes. Nesse sentido, é possível ver um ciclo cultural que é próprio das novas mídias.

O vício

O uso compulsivo das redes sociais também foi retratado no documentário. Uma única notificação fez com que o personagem passasse horas e horas rolando a timeline. Esse é o efeito das máquinas caça-níqueis — um novo modo de se relacionar com o conteúdo e com a mídia. A ansiedade causada a partir do movimento de rolar a tela já é suficiente para largar uma dose de dopamina no cérebro. Além disso, o usuário tem acesso a um mundo que concorda plenamente com todas as suas crenças — o que aumenta a probabilidade de ele curtir, comentar e compartilhar aquela postagem. O sistema, então, se retroalimenta e continue em um loop de oferta, demanda, venda.

Os sentidos táteis agora também fazem parte da experiência. O dedo indicador que vai de cima da tela para baixo já faz parte do cotidiano das crianças desde seus primeiros meses de vida. Essa transferência da tridimensionalidade para as superfícies bidimensionais é explicada por Baitello (2001, p.7) como uma hipertrofia da visão e da visibilidade. E essa hipertrofia alcança níveis tais que as dimensões privadas e públicas são atravessadas. A partir de curtidas, compartilhamentos e do próprio comportamento do usuário na rede, é possível compreender o que ele está sentindo (raiva, felicidade, tristeza).

Quando os acontecimentos que antes eram privados tornam-se públicos, a barreira que existia entre esses territórios é quebrada e momentos comuns podem se tornar conteúdo jornalístico. Ao mesmo tempo que esse movimento acontece, a comunicação presencial e interpessoal é substituída (atrofiada) por aplicativos que simplificam a vida do usuário.

Acredito que a resposta para esse problema esteja em um controle maior dessas empresas. Transparência e regulamentação para os dados dos usuários são alguns dos métodos que poderiam resolver a questão do consumismo e da influência a partir de perfis pré-selecionados. O documentário falha ao deixar na mão do usuário a resolução para o problema. Desativar notificações e diminuir o uso do celular podem remediar o problema, mas não o resolve. Cobrar os poderosos e exigir o poder sobre nossos próprios dados seria uma solução mais efetiva.

  • BAITELLO Jr., Norval. O tempo lento e o espaço nulo. Mídia primária, secundária e terciaria. Texto apresentado no Grupo de Trabalho – GT Comunicação e Cultura, durante o IX encontro anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – COMPÓS. Porto Alegre, 2000. Publicado em: FAUSTO NETO, Antônio et al. (Org). Interação e sentidos no ciberespaço e na sociedade. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001. Disponível em: <https://www.cisc.org.br/portal/index.php/pt/biblioteca/view.download/7-baitello-junior-norval/10-o-tempo-lento-e-o-espaco-nulo-midia-primaria-secundaria-e-terciaria.html>. Acesso em 04 de março de 2021.
  • GARSON, Marcelo. O conceito de convergência e suas armadilhas. Galáxia (São Paulo) [online]. 2019, n.40, pp.57-70. ISSN 1982-2553. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1982-25542019135324>. Acesso em 04 de março de 2021.
  • LEMOS, André. Cibercultura, cultura e identidade. Ensaio apresentado do Fórum Cultural Mundial e no Simpósio Emoção Art. Ficial (Itaú Cultural). São Paulo, julho 2004. Contemporanea – Revista de Comunicação e Cultura. Programa de PósGraduação em Comunicação e Cultura Contemporânea. Facom/UFBA Salvador, v. 2, n. 2, dez./2004, p. 9 – 22. Disponível em: <https://facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/territorio.pdf>. Acesso em 04 de março de 2021.
  • LEMOS, André. Ciberespaço e tecnologias móveis: processos de territorialização e desterritorialização na cibercultura. In: MÉDOLA, Ana Silvia; ARAÚJO, Denise; BRUNO, Fernanda (Org.). Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 277-293.
  • PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. 10ª Ed. Editora Cultrix. São Paulo. 1981.
  • SANTAELLA, Lucia. Pós-humano – por quê?. REVISTA USP, São Paulo, n.74, p. 126-137, junho/agosto 2007

Texto redigido por Vitória Pimentel e originalmente escrito para a disciplina de Teorias Contemporâneas da Comunicação da Unisinos em 2020/2.

Imagem: Mulher foto criado por rawpixel.com – br.freepik.com

#documentário

Previous Post

Next Post