Genealogia do conceito de cultura

25 de maio de 2016 Processocom

Andres Kalikoske

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Cultura popular latino-americana

Conceituar a cultura pode ser uma tarefa bastante inconsistente e escorregadia. Não raramente todas as armas são apontadas aos pesquisadores que buscam se aventurar nesse estimulante exercício teórico. Isso porque o conceito científico de cultura, que surge na Antropologia, rapidamente passa a ser absorvido por diversas áreas do conhecimento. Seus múltiplos desenvolvimentos promovem interpretações e ampliações que consideram os movimentos teórico-metodológicos de cada área, descaracterizando, em muitos casos, seu sentido inicial.

A raiz etimológica do vocábulo aparece pela primeira vez na Europa, no início do século XVIII. No auge do Iluminismo, passa a ser empregada para designar o status social do clero, da nobreza e da população. Nesse momento, seu viés progressista e reformista convida o cidadão europeu a enfatizar a razão e o esclarecimento, colocando em segundo plano as normativas religiosas e o misticismo (BAUMAN, 2011). A ideia de cultivar e cultuar se desenvolve em seguida, conferindo nações as noções de pertencimento, memória e herança cultural.

Um dos primeiros cientistas ensaístas do conceito de cultura é o antropólogo estadunidense Lewis Morgan (1818-1881), principal expoente do evolucionismo cultural. A cultura, na compreensão de Morgan, deve esmiuçar o desenvolvimento humano, buscando compreender os caminhos percorridos pelo homem “primitivo”. Nesse sentido, em “A sociedade antiga”, de 1877, o antropólogo oferece uma minuciosa classificação das etapas da civilização, concebendo os seguintes estágios: status inferior de selvageria, status intermediário de selvageria, status superior de selvageria, status inferior de barbárie, status intermediário de barbárie, status superior de barbárie e, por fim, status de civilização. Sua concepção universalista, hoje defasada, considera que “em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente”, sendo que, “toda a humanidade deveria passar pelos mesmos estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado” (CASTRO, 2005, p. 28).

Uma segunda perspectiva, mais arejada, ainda que igualmente limitada, parte do antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917). Surge no final do século XVIII e no início do seguinte, quando a ideia de cultura começa a conquistar apelo popular. Nesse momento o termo “Kultur” já é amplamente citado por germânicos, para simbolizar aspectos espirituais de uma comunidade, e o termo “civilisation”, cunhado por franceses, é mencionado para referir as realizações materiais dos povos.  Os dois termos são sintetizados por Tylor, que assume a terminologia “culture” em suas pesquisas. A noção de Tylor rapidamente se difunde no ambiente intelectual, e a cultura passa a ser considerada como “todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade” (TYLOR, 2005, p. 69). Além de não fazer distinção entre cultura e civilização, Tylor considera que “cultura” deve ser uma palavra escrita no singular e também hierarquizada em estágios evolutivos, ainda aproximando-se da antiga compreensão universalista.

Mas o trabalho de Tylor avança cientificamente em comparação ao texto de Morgan. No primeiro capítulo de seu emblemático “A Ciência da cultura”, o antropólogo eleva a cultura ao status de objeto científico, buscando apresentar seu método comparativo, que disseca e classifica elementos da cultura dos povos em diferentes grupos. Em suas palavras, “ao examinar as armas, elas devem ser classificadas como lança, maça, funda, arco-e-flecha, e assim por diante” (TYLOR, 2005, p. 76). Contudo, críticos de Tylor consideram que relatos de missionários, comerciantes, viajantes e demais observadores utilizados em suas investigações teriam baixo grau de confiabilidade, comprometendo a cientificidade do método comparativo. Em contraponto, Tylor responde que seu método considerava “testes de recorrência”, ou seja, somente relatos que apresentam alguma similaridade poderiam ser considerados.

FranzBoas

Franz Boas representando a dança do espírito canibal

Mais recentemente, a ideia contemporânea sobre o conceito de cultura é concebida pelo antropólogo estadunidense Franz Boas (1858-1942), que introduz uma terceira perspectiva, relativista, pluralista e não hierárquica. Ao considerar que “cada ser humano vê o m
undo sob a perspectiva da cultura em que cresceu”, a cultura em Boas ressurge como um elemento explicativo da diversidade dos povos (CASTRO, 2004, p. 18). Boas se recusa a considerar questões raciais, civilizações menos ou mais desenvolvidas, mas enaltece a diversidade, explicada por fatores variantes como “o meio ambiente e especialmente as condições sociais em que vivem essas populações” (CASTRO, 2004, p. 19).

Crítico do método comparativo utilizado por seguidores do evolucionismo cultural, Boas não recusa a teoria da evolução de Charles Darwin, mas sua interpretação, por parte dos evolucionistas, que “colocavam no ápice do processo de evolução a própria sociedade em que viviam” (CASTRO, 2004, p. 15). Para explicar a aparição de elementos culturais semelhantes em diferentes culturas, Boas pressupõe que, através da difusão via comércio, guerra, viagens, elementos culturais de determinada tribo se espalharam para outras culturas. Novamente, contesta a ideia de um caminho evolutivo, que se inicia na barbárie e caminha até a civilização, defendida pelos evolucionistas.

Sem querer promover generalizações, Boas limita sua explicação a “áreas relativamente próximas, onde se pudesse reconstituir com razoável segurança a história das transmissões culturais” (CASTRO, 2004, p. 17). Como resposta, defende a indução empírica, ou método histórico, exigindo que a comparação entre diferentes civilizações passe a considerar extensões territoriais delimitadas. Abandona, assim, o verbete cultura, no singular, propondo pensar a partir de culturas individuais, no plural.

A partir do trabalho de Boas, os antropólogos começam a considerar que existe uma limitação na influência geográfica sobre os fatores culturais, o chamado determinismo geográfico. Boas demonstra que a ação da natureza sobre a humanidade não é puramente receptiva, uma vez que o ser humano possui elevada capacidade de adaptação, cabendo ao cientista social explorar as diferentes culturas com profundidade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

CASTRO, Celso (Org.). Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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