Mais democracia, menos mercado. Artigo de Jürgen Habermas
18 de março de 2012 Processocom
Hoje, a Europa tem que acertar as contas não tanto com povos ilusoriamente homogêneos, mas sim com Estados-nação concretos, com uma pluralidade de línguas e de esferas públicas.
A análise é do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 12-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No processo de integração europeia, dois planos devem ser diferenciados. A integração dos Estados enfrenta o problema de como repartir competências entre a União Europeia, de um lado, e os outros Estados membros, de outro. Essa integração, portanto, diz respeito à ampliação de poderes das instituições europeias.
Ao contrário, a integração dos cidadãos diz respeito à qualidade democrática desse crescente poder, ou seja, a medida em que os cidadãos podem participar na decisão dos problemas da Europa. Pela primeira vez desde a instituição do Parlamento europeu, o chamado fiscal compact que está sendo aprovado nestas semanas (para uma parte da União) serve para fazer crescer a integração estatal sem um correspondente crescimento da integração cívica dos cidadãos. (…)
A tese que eu gostaria de defender aqui está logo dita. Só uma discussão democrática que aborde em 360 graus o futuro comum da nossa cidadania europeia poderia produzir decisões politicamente críveis, isto é, capazes de se impor aos mercados financeiros e aos especuladores que visam à bancarrota dos Estados. (…)
Até agora, embora tentando harmonizar astutamente (pelo menos na zona do euro) as suas políticas fiscais e econômicas, os Estados membros não foram além das proclamações retóricas. A integração dos Estados se tornará crível apenas quando puder se apoiar em uma integração dos cidadãos em que se manifestem maiorias declaradamente pró-europeias. Caso contrário, a política não recuperará mais a sua autonomia contra as agências de rating, aos grandes bancos e aos hedgefounds. (…)
Do meu ponto de vista, sobre o plano da política europeia, o governo alemão está fazendo poucas coisas certas e muitas coisas erradas. O slogan “Mais Europa” é a resposta certa para uma crise devida a um defeito de construção da comunidade monetária. A política não consegue mais compensar os desequilíbrios econômicos que dela nasceram. No longo prazo, a reorganização dos desenvolvimentos econômico-nacionais divergentes só é realizável em termos de colaboração, no âmbito de uma responsabilidade democraticamente organizada e compartilhada, capaz de legitimar também um certo grau de redistribuição que ultrapasse as fronteiras nacionais.
Desse ponto de vista, o fiscal compact certamente é um passo na direção certa. Desde a sua definição oficial – tratado “para a estabilidade, a harmonização, e a governabilidade” – vê-se como esse pacto é constituído de dois elementos diferentes. Ele obriga os governos, de um lado, a respeitar as disciplinas de orçamento nacional; de outro, à institucionalização de uma governabilidade de política econômica, que tenha por objetivo eliminar a descompensação econômica (pelo menos na zona do euro).
Mas como é possível que Angela Merkel festeje só a primeira parte do pacto, a que visa a penalizar as infracções de orçamento, enquanto não gasta uma palavra sobre a segunda parte, que visa a uma concertação política da governabilidade econômica? (…)
O governo alemão, embora reconhecendo em palavras a necessidade de uma maior integração, de fato, contribui para deixar a crise apodrecer. A esse respeito, limito-me a quatro breves considerações. Em primeiro lugar, não é preciso muito, em termos de política econômica, para entender que uma política unilateral restritiva, como a defendida na União Europeia pelo governo alemão, leva à deflação os países que mais sofrem. Onde as políticas restritivas não se integram a políticas de desenvolvimento, a paz social das nações postas sob tutela acabará sendo perturbada não apenas pelas manifestações pacíficas e ordenadas dos sindicatos.
Em segundo lugar, a política restritiva responde à ideia errada segundo a qual tudo se resolverá quando os Estados membros saibam aceitar esse novo pacto de estabilidade e crescimento. Daí a fixação de Angela Merkel em querer impor sanções: uma postura ameaçadora absolutamente supérflua no momento em que se conseguia inserir na legislação ordinária da União Europeiauma governabilidade econômica compartilhada. Em vez disso, continua assolando a ideia de que bastaria instituir uma “justa” constituição econômica – portanto, “regras” supratemporais – para poupar os esforços de uma concertação político-econômica, além dos custos derivados de uma legitimação democrática dos programas de redistribuição.
Em terceiro lugar, Merkel e Sarkozy atuam substancialmente no plano de uma política intergovernamental, com o objetivo de levar adiante, sem muito barulho, a integração dos Estados e não a dos cidadãos. Os chefes de governo dos 17 países representados no Conselho dos Ministros deveria ter em mãos o bastão de comando. Mas, uma vez dotados das competências de governança econômica, eles esvaziaram a soberania econômica dos parlamentos nacionais. A consequência seria um reforço pós-democrático dos executivos de consequências imprevisíveis. Então, o inevitável protesto dos parlamentos depostos teria ao menos a vantagem de trazer à tona aquele déficit de legitimação que só uma reforma democrática dos órgãos de governo comunitários poderá preencher.
Em quarto lugar, as palavras de ordem do governo alemão em termos de orçamento despertam no exterior a suspeita de que aAlemanha federal persegue objetivos nacionalistas. “Nenhuma solidariedade, se antes não se garante a estabilidade”. A proposta lançada por Berlim de mandar um comissário plenipotenciário para Atenas – onde já há, com funções de controle similares, três comissários que recém chegaram da Alemanha – demonstra uma incrível insensibilidade para com um país em que ainda não se apagou a recordação das atrocidades cometidas pelas SS e pela Wehrmacht. Helmut Schmidt, em um discurso apaixonado, deplorou que o governo atual esteja dilapidando o precioso capital de confiança que a Alemanha havia conquistado junto aos vizinhos ao longo dos últimos 50 anos.
A impressão geral – que se tira dessa arrogância tola, de um lado, e da resposta muito tímida à chantagem dos mercados financeiros, de outro – é que a política europeia ainda não atingiu o nível de uma verdadeira “política interna”. (…)
Essas prudências não são nem justificáveis pelo velho argumento segundo o qual a integração está fadada ao fracasso por falta de um povo europeu e de uma esfera pública europeia. Nas ideias de “nação” e de “povo”, tratava-se de sujeitos homogêneos fantásticos: ideais que só ao longo do século XIX, canalizados pelas escolas públicas e pelos meios de comunicação, haviam se apoderado do imaginário popular. Mas as catástrofes do século XX não deixaram indenes as ideologias historiográficas dos vários nacionalismos.
Hoje, a Europa tem que acertar as contas não tanto com povos ilusoriamente homogêneos, mas sim com Estados-nação concretos, com uma pluralidade de línguas e de esferas públicas.
Embora se associando cada vez mais estritamente no plano europeu, os Estados nacionais conservam funções específicas. Eles não devem se dissolver em um Estado federal da Europa, mas sim conservar um papel de garantia para os níveis de democracia e de liberdade felizmente já alcançados. Cada um de nós une dois papéis: o de cidadão do próprio país e o de cidadão da União. E, na medida em que os cidadãos da União entenderem como as decisões europeias modificam a sua vida profundamente, mais eles se sentirão envolvidos em uma política europeia que também pode pedir que se partilhem sacrifícios. (…)
Diz-se que a República de Weimar faliu porque seus defensores democráticos eram muito poucos. A União Europeia falhará por causa de seus muitos defensores muito tépidos?