Sobre o favela movie e o diálogo com a realidade

4 de agosto de 2010 Processocom

De Guaciara Freitas

Desde o estrondo provocado pelo sucesso internacional do filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), a crítica especializada mais voltada para o público consumidor, sobretudo no circuito estadunidense, encontrou logo um rótulo sob o qual enquadrá-lo: favela movie (cinema de favela). Esse “novo gênero” fílmico designaria a produção cinematográfica brasileira que expunha a realidade da favela, a partir de imagens explícitas de violência, montadas segundo o ritmo dilacerante dos filmes de ação hollywoodianos e alinhadas a uma estética publicitária.


Por outro lado, surgiram também as análises dos acadêmicos, dentre as quais se destacou a de Ivana Bentes, historiadora e crítica, que além do espaço em revistas científicas, teve inserção em grandes jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, para a discussão que comparava os princípios políticos e estéticos da produção cinematográfica realizada dentro do movimento do Cinema Novo e as motivações mais comerciais e menos ideológicas das produções realizadas segundo a lógica da grande indústria do cinema dos anos 2000.

Nas páginas de jornais como Folha de São Paulo e O Globo, os mesmos que publicaram os textos de Ivana sobre a “cosmética da fome”, repercutiram as reações negativas dos moradores do conjunto habitacional Cidade de Deus, contra a violência colada à imagem do lugar onde vivem. Curiosamente, os mesmos veículos que deram voz aos moradores de favela, que se pronunciaram descontentes com o filme, são os mesmos que costumeiramente noticiam a favela como o lugar do crime, da violência, da invasão policial, dos pretos, dos pobres sem fazer nenhuma enquete publicada em suas páginas sobre a opinião dos moradores sobre tais notícias.

O filme produzido com um orçamento de R$ 8 milhões, pela O2 Filmes (produtora de Meirelles) e distribuído pela Lumiere, teve 3.370.871 espectadores e uma renda de pouco mais de R$ 19 milhões. Nada mal para um diretor que praticamente estreava no cinema de longa metragem (antes Fernando Meirelles co-dirigiu Menino Maluquinho 2), e que aos 42 anos desejava fazer cinema por que já estava rico e realizado com suas experiências profissionais, principalmente na produção publicitária.
Para além do sucesso de público e da repercussão crítica o filme continuou provocando uma série de reflexões no campo teórico sobre o modo de exposição da miséria no audiovisual, sobre o fato de a favela ter se tornado uma espécie de museu da miséria e do exótico para visitação ou ainda um campo de concentração, onde estão confinados aqueles que carregam consigo tudo aquilo que ninguém gosta de ver a fim de manter a ilusão do conforto burguês.
Depois de Cidade de Deus veio Carandiru (Hector Babenco, 2003), que não mostrava a favela, mas a realidade daqueles que geralmente são saídos de lá e que para lá retornam se sobreviverem ao inferno da penitenciária. Maior sucesso nacional de bilheteria das décadas de 1990 e 2000, o filme de Babenco teve 4.693.853 espectadores e uma renda de R$ 29.623.481,00. Ao contrário de Meirelles, Babenco já era um diretor experiente e consagrado, que acumulava êxitos na carreira, como o filme Lúcio Flávio — O Passageiro da Agonia (1977), que teve quase seis milhões de espectadores, o maior público já registrado para filmes brasileiros. Isso numa época em que a relação do público brasileiro com o filme nacional era muito diferente do que acontece hoje.
Se Cidade de Deus, o filme, mostrou a favela dos bandidos, Tropa de Elite (José Padilha, 2007), mostrou a favela dos policiais corruptos, mais bandidos que os fora da lei. Tropa de Elite encontrou um momento pleno da chamada “pirataria”, ganhou as ruas e espaços nos dvd´s domésticos antes mesmo de estrear na tela grande. Sucesso de pirataria, o filme estréia em outubro deste ano a continuação, Tropa de Elite 2.

Esses exemplos episódicos sobre os filmes produzidos pela indústria cinematográfica no Brasil da última década, que focalizam a realidade da miséria e dos miseráveis deste país, indicam uma significativa mudança no comportamento do público diante de aspectos de sua realidade revelados de modo explícito. Sem querer entrar nas especificidades da construção cinemanovista, sabemos que um dos maiores objetivos do movimento era a formação de platéia, pois os cineastas militantes acreditavam que através da projeção da miséria no cinema, o povo pudesse reagir politicamente, organizar-se, derrubar o sistema de exploração que os tornava os miseráveis protagonistas daquelas histórias.
É claro que a estética do Cinema Novo fundamentava-se na abstração, não se tratava da expressão da realidade tal qual vemos hoje nos filmes mencionados. De todo modo, podemos observar que o tipo de repercussão desses filmes mais recentes, tanto entre o público como entre a crítica e os teóricos, implica uma mudança no padrão de receptividade do brasileiro a um aspecto de sua realidade frequentemente rejeitado.
Então, o que significa a intensa pirataria do Tropa de Elite? No mínimo indica que as pessoas, sobretudo as menos abastadas, queriam ver o filme, se interessaram por ele e esse não é um fato menor, ao contrário. Bem ou mal, o filme brasileiro consegue nesses casos um nível de comunicação com o seu público. Não um público seleto, elitizado, intelectualizado, os interlocutores especializados, mas o público mais popular, aquele que experimenta a violência do policial, do traficante, das instituições governamentais.
Nesses filmes revela-se a diferença entre o marginal revolucionário da década de 60 e o marginal incluído de agora. Naquela década a idéia era revolucionar, agora é conquistar direitos dentro do sistema vigente, a mobilidade social está em discussão. Lembremo-nos que o favela movie não é um gênero marginal, apesar da temática, ao contrário de como eram vistas as produções do Cinema Novo e depois, do Cinema Marginal.
Embora o favela movie tenha surgido num contexto muito diferente dos anos 60, inclusive do ponto de vista das ideologias dos movimentos sociais organizados nas favelas e periferias, é preciso dizer que a tematização da favela no cinema brasileiro não é nenhuma novidade. Dentro do universo urbano, a favela conformou-se como lugar de fascínio, principalmente sobre os jovens diretores.
O filme As Favelas (Matos Pimenta, 1926) é considerado o precursor na abordagem da temática e exploração de seus espaços como set de filmagem. Mas na onda do início da década de 1960, o cinema daqueles novos experimentadores do audiovisual encontrou na favela o lugar da mostração e da narração sobre a realidade do marginalismo urbano: Cinco Vezes Favela (1962), O assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1962), A grande feira (Roberto Pires, 1962), Os mendigos (Flavio Migliaccio, 1962), Gimba (Flávio Rangel, 1963), Escravos de Jó (Xavier de Oliveira, 1965), Infância (Antônio Calmon, 1965) e Garoto de calçada (Carlos Frederico Rodrigues, 1965) são alguns dos exemplos que trazem à cena esse favelado como marginal, cuja indigência, causada pela sociedade, o desobriga do engajamento nas lutas operárias. No mesmo período produções estrangeiras descobriram a favela como cenário: o argentino Paulo e Pedro (Angel Acciaresi, 1962), a co-produção sueco-brasileira Fábula de Copacabana (Arne Sucksdorf, 1963), o francês L´homme de Rio (Phillippe de Broca, 1964), e o italiano Uma rosa per tutti (Franco Rossi, 1967) são alguns casos.

Cacá Diegues. Foto: Christian Rodrigues

Cacá Diegues. Foto: Christian Rodrigues

Hoje o cineasta Cacá Diegues, uma cria do Cinema Novo, afirma que se Cidade de Deus revelou a favela dos traficantes e Tropa de Elite, a dos policiais, o filme 5X Favela – Agora Por Nós Mesmos mostra a favela pela ótica dos moradores.
Cinco Vezes Favela (1962) foi uma produção do Centro Popular de Cultura da UNE, que marcou o movimento do Cinema Novo não pelo sucesso de crítica ou de público, mas pelo radicalismo que empregou. Tratava-se de um longa que reunia cinco curtas histórias sobre favela, dirigidas por cinco diretores diferentes. À época, Cacá dirigiu o episódio Escola de Samba Alegria de Viver.

Parte da equipe de Cinco vezes Favela – Agora por nós mesmos: André Carvalho (produtor), Thiago Martins (ator), Luciano Vidigal (diretor) e Feijão (ator). Foto: Divulgação do filme

Parte da equipe de Cinco vezes Favela – Agora por nós mesmos: André Carvalho (produtor), Thiago Martins (ator), Luciano Vidigal (diretor) e Feijão (ator). Foto: Divulgação do filme

Se no Cinco Vezes Favela de 1962, os diretores eram estudantes universitários, revolucionários, apaixonados por cinema, nascidos nos berços da classe média, o 5X – Agora Por Nós Mesmos é uma experiência projetada por Cacá e Renata Almeida Magalhães, com objetivo de fazer com que o filme fosse realizado por quem realmente conhecia a favela por dentro, os próprios moradores. Então, Cacá aproveitou-se dos movimentos culturais organizados por diversos grupos que atuam na formação de profissionais para a área de audiovisual, nas favelas do Rio de Janeiro, como CUFA, AfroReggae, Nós do Morro e abriu inscrições para que os interessados em fazer o filme do início ao fim participassem de oficinas de maquiagem, figurino, fotografia, iluminação, roteiro, direção etc.
Hoje, com o filme pronto, só a montagem e a trilha sonora ficaram a cargo de profissionais contratados, Quito Ribeiro e Guto Graça Melo, respectivamente, que trabalharam sob o olhar atento dos diretores dos episódios Fonte de Renda, Arroz com Feijão, Concerto para Violino, Deixa Voar e Acende a Luz.
É precipitado ver Cidade de Deus, Tropa de Elite ou 5X Favela – Agora por Nós Mesmos exclusivamente pelo viés da indústria cinematográfica, como uma simples opção temática, em virtude do esgotamento de outras fórmulas. Esses filmes são a ponta visível de um contexto muito mais amplo, em construção desde a década de 80, por um conjunto de organizações sociais, que souberam se fortalecer e operar em rede num circuito paralelo ao da grande mídia, por exemplo, para comunicar inclusive seus universos culturais tantas vezes apartados.
Para além das discussões teóricas existe uma realidade de pessoas que vivem o cotidiano em um mundo absolutamente distinto daquele com o qual estamos acostumados quando não vivemos em uma favela, comunidade ou periferia controlada por traficantes, invadida por policiais e ao mesmo tempo visitada por autoridades, artistas, pesquisadores.

Na sacada do 3º andar do CCWS em Vigário Geral

Na sacada do 3º andar do CCWS em Vigário Geral

Foi uma realidade assim que conheci em Vigário Geral, quando pretendi ver com meus próprios olhos o que poderia ser confirmado ou refutado nos vários relatos que eu já havia lido sobre o lugar e sobre as ações do Grupo Cultural AfroReggae. Num dia de sábado, as mulheres lavavam a frente das casas e as crianças brincavam ao lado de jovens armados com metralhadora, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Não é, mas aos poucos até a gente vai se acostumando a proceder como se os soldados do tráfico fossem invisíveis, afinal um visitante não pode encará-los. Isso eu já havia lido.
Mas Vigário, com suas ruas limpíssimas e sua calma aparente parecia tão em paz, que quando entrei na favela e passei entre os sentinelas armados, nem precisei fazer de conta que não os tinha visto. Eu realmente não os vi. Eles ficam no pátio acimentado que marca a entrada de quem desce a passarela e penetra na área ainda controlada pelo tráfico. Lá o visitante vê o lugar onde foram estendidos os corpos dos mortos na Chacina de Vigário Geral.

Antes de começar a entrevista com Feijão

Antes de começar a entrevista com Feijão

E o que cinema tem a ver com isso? Feijão, um dos meus entrevistados em VG ajuda a responder.
Hoje feijão é mediador de conflitos do AfroReggae, antes era chefe do tráfico na favela de Acari, um dos chefes do Terceiro Comando. Na função de mediador de conflitos é ele quem dialoga com os traficantes do Terceiro Comando para avisar que vai chegar um visitante na favela, para dizer que a visita vai fazer um giro pela comunidade e que seria bom se não fosse assustada pela ostentação de armas etc. Existem missões mais espinhosas para um mediador, como tentar salvar a vida de uma pessoa jurada de morte por um traficante. Não é uma tarefa fácil. Feijão diz que o tráfico tem uma linguagem muito própria e que uma palavra mal empregada pode custar a vida de alguém, principalmente nos tempos atuais em que os chefes do tráfico são muito jovens e vivem “doidões”, por causa do consumo do produto que vendem.
Mas, minha entrevista com Feijão não era exatamente sobre seu passado no tráfico ou sobre o seu presente como mediador e sim sobre o futuro como ator. Feijão é um dos protagonistas do 5X Agora Por Nós Mesmos. Ele faz o papel de traficante no episódio Concerto para Violino, dirigido por Luciano Vidigal. Por conta disso, Feijão conta com um sorriso estampado no rosto, que as notinhas no jornal não o chamam mais de “Feijão, o ex-traficante”, e sim como “Washington Rimas, o ator de cinema”. Nessa hora tive a impressão de que só estando diante daquele homem e olhando aquela felicidade estampada nos olhos dele enquanto dizia isso, podia me fazer entender o sentido do que eu buscava sobre a relação entre mídia e periferia.
Feijão entrou no filme por acaso, por que vários testes já haviam sido feitos para o papel, inclusive com atores profissionais, mas nenhum tinha sido aprovado por Luciano e Cacá. Foi então que Luciano Vidigal soube da história de Feijão e meio temeroso o contatou e fez o convite para o teste. Feijão estava de viagem marcada aos Estados Unidos, a convite da Agência de Defesa Norte Americana para dar uma série de palestras em vários estados, por isso o teste teve de ser feito logo. “Seu Cacá me disse que eu sou um ator pronto, mas eu falei para ele que eu sou um ator da vida real”, conta sorrindo o ator Washington Rimas, que foi junto com Cacá Diegues ao 63º Festival de Cannes, entre os dias 12 e 23 de maio deste ano.
E depois de dar entrevistas na TV Globo, de ter sua foto estampada nas páginas dos cadernos de cultura dos jornais, o filho dele diz na escola que o pai é artista. Quando Feijão chega de manhã em VG para trabalhar no Centro Cultural Wally Salomão é como artista que os moleques da comunidade o recebem. E o que isso tem a ver com favela movie?! Feijão diz que quando a molecada o recebe dizendo que o viu na televisão, ele tem mais força para trazer um desses moleques para o campo da arte, da cultura e também pela força do exemplo pode dirigir-se aos jovens que parecem totens carregando aquelas armas, para dizer que existe um outro mundo que vale a pena conhecer.

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