Ni olvido ni perdón: sobre o Dia da Memória na Argentina
28 de março de 2017 Processocom
Fabio Pinto
Doutorando em Ciências da Comunicação pela Unisinos
Há um feriado especialmente importante no calendário argentino: o dia 24 de março, Dia da Memória, alusivo ao golpe que, há 41 anos, foi perpetrado por uma junta militar que tirou do poder a então presidente Isabel Perón e colocou em seu lugar o general Jorge Videla. Foi o início de uma das ditaduras mais violentas da América Latina. No dia 24 de março são lembrados aqueles que jamais devem ser esquecidos: os que desapareceram entre 1976 e 1983, durante o período ditatorial. Venho estudando o assunto desde 2015, quando fui admitido como aluno do programa de Doutorado em Ciências da Comunicação da Unisinos. O tema de minha tese são as duas versões – publicadas, respectivamente, em 1957 e 1969 – de uma história em quadrinhos chamada El Eternauta, obra mais conhecida do roteirista argentino Héctor Germán Oesterheld (1919 – 1977). Oesterheld é uma das vítimas da ditadura militar dos anos 1970, e isso torna a história desse período um dos eixos importantes de meu trabalho. Pode-se destacar na trajetória de Oesterheld o compromisso assumido com a ética humanista que norteou a produção artística do escritor, ética que se tornou uma práxis quando ele aderiu à luta contra a ditadura de Videla. Oesterheld foi um montonero[1], como suas quatro filhas, e assim como elas foi sequestrado, torturado e assassinado por agentes do governo. Os corpos de Héctor e de suas filhas nunca foram encontrados, o que os torna, oficialmente, desaparecidos[2]. Dentre as vítimas do terrorismo de estado, as que mais sofrem são as que seguem vivas. Elsa Sanchéz de Oesterheld, viúva de Héctor, viveu e conviveu até 2015 com o luto perpétuo daqueles que não têm a oportunidade de enterrar seus mortos. O luto pelos insepultos. Assim como Elsa, sofreram e sofrem os familiares das 30.000 vítimas do regime. Como toda ferida ainda aberta, o tema dos desaparecidos argentinos é delicado. É difícil saber como abordá-lo e há os que preferem ignorá-lo, por vergonha, conveniência ou conivência. No campo político, vale destacar o “intento de vaciar el significado del día y de buscar desmovilizar las multitudinarias marchas que se realizan cada año el 24 de marzo”[3] do governo de Mauricio Macri. Através de decreto, o presidente argentino tornou ‘móvel’ todo e qualquer ‘feriado ponte’ – aqueles que caem nas sextas feiras, emendando com o final de semana. De acordo com o governo, tais feriados prejudicam o ano letivo dos estudantes, facilitam as ‘escapadas de descanso turístico’ e afetam a ‘competitividade produtiva’. O feriado do último dia 24 de março caiu em uma sexta feira. Sugeriu-se sua transferência para o dia 27, segunda. Organizações de direitos humanos como H.I.J.O.S (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio), Madres e Abuelas de Plaza de Mayo rechaçaram o decreto e foram às ruas na sexta passada. As marchas concentraram-se principalmente em frente à Casa Rosada, sede do governo, onde foi lido um manifesto contra Macri e a coalizão partidária da qual faz parte, o Cambiemos. A luta pela preservação da memória dos desaparecidos inclui a busca pelos que nasceram nos centros de tortura, filhos de militantes de esquerda. Muitos foram doados ou vendidos para famílias abastadas e alinhadas com o regime ditatorial. Um dos poucos a fugir desse destino foi Martin Oesterheld Mortola. Aos 42 anos, o neto de Héctor e Elsa Oesterheld é hoje o único sobrevivente direto de uma família devastada.
Cartaz alusivo aos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. ‘Nunca más’ é também o título do relatório emitido em 1984 pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), então presidido pelo escritor Ernesto Sábato.
[1]Os Montoneros foram uma organização que, da segunda metade dos anos 1960 em diante, foi radicalizando suas posições na mesma medida em que a junta militar procurava eliminar movimentos de oposição de qualquer natureza. Com o sequestro e ‘justiçamento’ do general Aramburu, em 1970, os Montoneros se assumem publicamente como um braço armado do peronismo de esquerda e, cinco anos depois, entram para a clandestinidade. Com o chamado Processo de Reorganização Nacional – nome dado ao golpe de estado comandado por Videla –, marcado pelo terrorismo de estado, os militantes montoneros foram gradualmente sendo dizimados por grupos militares e paramilitares.
[2] “Un desaparecido es una incógnita. No tiene entidad. No está ni muerto ni vivo, está desaparecido”, definiu de forma cínica o famigerado general Videla.
[3] “La memoria del PRO es intercambiable” (El País, 24 de janeiro de 2017). http://internacional.elpais.com/internacional/2016/08/25/argentina/1472132734_912427.html