Quadrinhos ao sul do mundo – Breve notícia sobre a historieta argentina

3 de junho de 2016 Processocom

Fabio Bortolazzo Pinto[1]

Criollo x Nacional[2]

Diferente na grafia, na acepção e na pronúncia, a palavra de origem espanhola criollo tem em comum com o termo crioulo da língua portuguesa pelo menos uma fração de significado: a ideia de nativo, ‘cria’ de determinado lugar. Usada em quase todos os estados do Brasil para referir pessoas negras ou mulatas, no Rio Grande do Sul, a palavra crioulo também serve para indicar outros indivíduos e práticas, num compartilhamento semântico com o criollismo[3] latino-americano.

Entre 1850 e 1950, período em que grandes levas de europeus vêm para a América do Sul, na Argentina e no Uruguai são chamados de criollos os filhos desses imigrantes que nascem na região do Prata. Com o passar do tempo, o trânsito de descendentes, principalmente de italianos e espanhóis, para o interior desses países, é acompanhado da restrição no significado do termo: criollo passa a ser o indivíduo ou o grupo de indivíduos que pratica – por adoção ou herança – os costumes considerados autóctones, ‘originais’ – relevados os diferentes graus de mestiçagem desses costumes –, relacionados, de alguma maneira, com a cultura ameríndia dos primeiros habitantes do continente, como os patagones representados, cômica e exageradamente, pelo índio Patoruzú, de Dante Quinterno[4]. Diferente do índio de Quinterno, há uma linhagem de quadrinhos argentinos, a chamada historieta gauchesca ou historieta criolla, que foge à idealização e, principalmente, à caricutura, através do realismo e do rigor histórico. Chegaremos a ela.

O que interessa apontar neste artigo, e, assim, retomar a análise iniciada há algumas semanas, é observar a diferença entre o criollo e o nacional, e a incorporação do primeiro termo à retórica dos discursos que banalizaram o segundo, que tornaram ‘nacionalismo’ um vocábulo à deriva, largamente utilizado por representantes de correntes ideológicas aparentemente irreconciliáveis.

Não há razão para colocar em dúvida que a criação de uma ‘tradição’ criolla corresponde, ao menos em um primeiro momento, à necessidade concreta de legitimação de uma (ou várias) identidade dos povos latino-americanos, sufocada por séculos de colonização europeia, mas cabe perguntar: em que termos e a partir de que traços referenciais um país como a Argentina fundou o ‘seu’ criollismo? Sem a pretensão de responder, posso apontar com certeza apenas um, talvez o mais recorrente: a figura do gaucho.

Segundo o escritor e bibliógrafo Horacio Jorge Becco,

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No hay em torno del ser y la personalidad de la Argentina um tema más apasionadamente debatido que el del gaucho. Casi ha dejado de ser ya un producto humano de un tiempo, un lugar y una herencia cultural y biológica, para convertirse en un mito, en una figura que representa la sustancia nacional e individual del argentino, como un imperativo de sangre e historia y por debajo o encima de renuncias, desviaciones y disfarces ocasionales. (BECCO, 1972, 9)

Os debates apaixonados sobre a figura do gaucho, entre os argentinos, podem ser definidas como disputas de poder, e, como tal, perecíveis e intermináveis. Perecíveis por serem de poder, intermináveis por serem apaixonados. Há algo que não muda num homem, afirma Pablo Sandoval, o colega de trabalho de Benjamín Espósito em El Secreto de Tus Ojos (Juan José Campanella, 2009): a paixão. A paixão extrapola o campo da racionalidade, e se um debate é vencido pelo argumentador eficaz, através do raciocínio, um debate apaixonado está fadado a jamais chegar a qualquer conclusão. Debates são, muitas vezes, vencidos através do apelo a uma ‘retórica das paixões’ que passa pelo uso de certas palavras-chave. Uma delas, largamente utilizada no campo político – e de forma idiossincrática nas duas décadas que venho tentando mapear nesta série de artigos –, é nacional.

Na América Latina, houve um esforço, da parte de governos populistas estabelecidos a partir da segunda metade da década de 1930, inspirados no sucesso da do partido nazista alemão e do fascismo italiano, para atrair em torno de si o apoio das classes menos favorecidas. O apelo ao ‘patriotismo’, ao ‘sentimento nacional’, por abstratas que sejam tais ideias, acionam facilmente mecanismos ligados à necessidade de pertencimento, de reconhecimento ou criação de uma identidade mais ampla que aquela percebida junto à pequena comunidade com a qual o indivíduo interage cotidianamente. Na Argentina, os sucessivos governos que, através de golpes militares, civis (ou ambas as coisas), tendessem mais à esquerda ou à direita do espectro ideológico, investiram fortemente no poder de circulação massiva de certas construções discursivas.

Tomo como exemplo, para ilustrar o que venho procurando dizer neste artigo, o trecho de um discurso de Manuel Fresco, então governador da província de Buenos Aires, em 1932, e, mais tarde, simpatizante de Perón. O tema é bastante comum: o ‘perigo vermelho’, ou seja, a ameaça do socialismo. A ideia central defendida por Fresco é a de que o nacionalismo (então atrelado ao criollismo, em sentido amplo), há de mostrar o caminho para que o povo argentino resista à violência inerente aos regimes de esquerda que ameaçam tomar o poder.

En todos los países donde la crisis avanza y donde la violencia se desata, renace el nacionalismo; nosotros tenemos grandes, enormes, formidables reservas de nacionalismo que están saliendo a la superficie y que van a arrollar al socialismo rojo y a las izquierdas disolventes que atentan contra la integridad de las instituciones fundamentales de nuestra patria (…) hay reservas morales y nacionalistas para hacer frente a cualquier violencia (…). Los viejos hogares criollos representan los últimos reductos tras de los cuales se va abroquelando el patriciado nativo, dechado de virtudes y de honra, la vieja familia argentina que se extingue (…). Sentimos la nacionalidad de los viejos hogares criollos como una sugestión de conciencia autóctona, forjada em el crisol de un pasado de gloria, del que sólo puede renegar algún descastado a quien deshonra la patria en que nació o el aura del cielo azul que acarició su cuna. Somos nacionalistas, sí, por culto, por devoción y por convicción.[4]

E aqui chego, enfim, à sobreposição dos dois termos apresentados, um cruzamento de natureza semântica que se torna recorrente, a partir dos anos 1930, tanto nos discursos de direita, conservadores, reacionários, fascistas, quando nos moderados e de esquerda. Para mobilizar as classes populares, especialmente o operariado, o nacionalismo criollo como contraposição ao elemento exógeno, ao capital e aos interesses estrangeiros, é continuamente utilizado. Até a ascensão dos violentos governos militares dos anos 1960 e 1970, quando tal discurso “se repete como farsa”[5], e também como tragédia.

 

 

Continuará

[1] Doutorando do curso de Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

[2] Ainda que o assunto principal neste espaço sejam os quadrinhos argentinos, também me parece interessante insistir um pouco mais (e agradecer ao leitor pela paciência) na contextualização histórica e cultural antes de analisar em detalhe o mercado editorial, as publicações, as histórias e os personagens propriamente ditos.

[3] O criollismo é geralmente definido como uma corrente literária, com características de forma e estilo razoavelmente bem delimitadas. Tal corrente teria surgido nas últimas décadas do século XIX, na sequência da libertação dos países latino-americanos do domínio espanhol. Buscou incorporar, em verso e prosa, a fala comum e os sentimentos do homem sul-americano, legitimando-os como categorias artísticas. Mais do que uma corrente literária, pode-se pensar no criollismo como a tradução de um processo de recuperação/recriação identitária que não se restringe à literatura, alcançando outras formas de expressão cultural, suficientemente forte para influir nos costumes e nas dinâmicas sociais.

[4]  FRESCO, Manuel. Mensaje del gobernador de la provincia de Buenos Aires. Buenos Aires, 1938.

[5] “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” (MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2432)

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