Quadrinhos ao sul do mundo – Breve notícia sobre a historieta argentina
27 de maio de 2016 Processocom
Fabio Bortolazzo Pinto
Doutorando do curso de Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
É possível afirmar, sem grande margem de erro, que Juan Domigo Perón é a figura mais marcante da história política argentina. E que o Justicialismo, base de sua filosofia de governo, é a referência para a constituição de um espectro ideológico em cujas extremidades se encontram o que se pode entender como pensamento libertário, de um lado, e conservador, de outro. Entre os dois, uma série de nuances que tornam a compreensão do peronismo uma tarefa bastante complexa e que excederia muito os limites deste artigo. O que aqui nos interessa é retomar as ideias apresentadas anteriormente[1] sobre a ‘era de ouro’ dos quadrinhos argentinos, que corresponderia às décadas de 40 e 50 do século passado, e tentar aprofundá-las tendo como chave de leitura contextual o primeiro governo de Perón (1946 a 1955), sob o qual o mercado de historietas se desenvolveu de maneira inédita e ao fim do qual começou a retrair-se.
Em um dos episódios da primeira temporada do programa semanal Continuará, apresentado por Juan Sasturian[2] no Canal Encuentro[3], o principal roteirista da Editorial Columba, Robin Wood[4], afirmou que as revistas em quadrinhos publicadas pela editora eram voltadas para um público constituído de pessoas simples: camponeses, operários, soldados, policiais, sendo, assim, as únicas “verdadeiramente peronistas”, sendo pensadas também para pessoas das classes sociais menos abastadas. O policlassismo, a sociedade sem conflito de classes é um dos pilares do justicialismo, e a aproximação do governo com a classe operária, sua valorização – sob vários aspectos – é um dos grandes segredos para sua meteórica ascensão. E para sua derrocada, como veremos mais adiante.
O justicialismo tem como base certas platitudes que, hoje, talvez possamos classificar como conservadoras e/ou demagógicas, mas que até a primeira metade do século passado não eram assim tão comuns vindas de um governante militar. Próximo, em um primeiro momento, da doutrina social-cristã, o pensamento justicialista apregoa a valorização da família, a justiça social, uma justa distribuição de renda, melhoria nas condições de trabalho e a construção de um país economicamente pujante, a partir do esforço de todos. A eloquente simplicidade de tais propostas não poderia deixar de atrair a aprovação popular. Não é por acaso que “Perón é o primeiro político argentino a efetivamente compreender o papel que a comunicação de massa exerce nas sociedades modernas” (FERNANDES, 2015, p.1)[5]. O encontro, portanto, entre as políticas de incentivo à indústria cultural de massas na Argentina, principalmente durante o primeiro governo peronista, e a produção de quadrinhos (essencialmente um produto da cultura de massa) se dá não apenas no âmbito econômico. É também, de certa forma, a convergência de um discurso voltado para a compreensão, assimilação e incorporação de valores básicos, simples, pelas classes populares. A mensagem que perpassa a concepção da ‘função social’ das histórias em quadrinhos é a de que se trata, sobretudo, de um meio privilegiado de transmissão de valores culturais e morais, por seu potencial de satisfazer a necessidade (por vezes involuntária) de consumo de produtos culturais e de entretenimento. Vale reproduzir o trecho de um depoimento de Ramón Columba, fundador da Editorial Columba e da Associação Argentina de Editores de Revistas, que ilustra bem essa concepção e que, salvo engano, representa a postura da maior parte das grandes empresas de publicação de historietas argentinas naquele momento:
Necesitamos Quijotes, tanto en los estudiantes [de desenho] como entre los profesionales, !y también entre los editores… porque existe una tremenda responsabilidad histórica. A través de una historieta, se puede elevar la moral una nación, como así también elevar el valor cultural de los “pueblos que no tengam tiempo”, o no se preocupem por aumentar sus conocimientos culturales. (…) El ilustrador, es un ser que se debe al progresso, que da a la Humanidad.[6]
Outro dado que merece atenção é também parte da construção de um imaginário que atravessa o campo político, filosófico e prático do mercado de bens culturais: a valorização do ‘nacional’. Em 1946, a Argentina se encontra em um momento de prosperidade, em boa medida consequente dos benefícios da política industrial e da acumulação de lucros mediados pelas relações internacionais no período da segunda guerra mundial. É evidente um forte caráter nacionalista no governo, que propiciou estatizações em importantes órgãos públicos e investimentos em obras de infra-estrutura. Também vai ser tornando cada vez mais clara, à medida em que a prosperidade econômica do país começa a declinar, o recrudescimento da valorização do elemento nacional nas histórias em quadrinhos. Assunto para nosso próximo encontro.
Continuará
[1] http://www.processocom.org/?p=20128
[2] Juan Sasturian é jornalista, roteirista de quadrinhos e apresentador de televisão. É um dos mais conhecidos pesquisadores e críticos de historietas da Argentina.
[3] Primeiro canal de televisão do Ministério da Educação da República Argentina.
[4] Robin Wood é um dos mais prolíficos roteiristas de quadrinhos do país vizinho, criador de, entre outros, Nippur de Lagash.
[5] FERNANDES, “El Nestornauta: a HQ El Eternauta e o imaginário nacionalista na Argentina Kirchnerista”. In.: Z Cultural – Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (UFRJ). Ano IX, nº 3.
[6] LIPSZYC, E. La Historieta Mundial. Buenos Aires: Escuela Panamericana de Artes, 1957.