Cantos Maxakalis: a poética dos indígenas do Vale do Mucuri

18 de maio de 2016 Processocom

Helânia Thomazine Porto

Qual é a poesia indígena? Como ela se estrutura? Para o povo Maxakali (que na língua indígena é Tikmú’ún e significa “verdadeiros humanos”), de Minas Gerais, os cantos seriam suas poesias. Nesse gênero, há possibilidade de trazer à tona parte da essência do homem, da mulher e da criança Maxakali e suas cosmovisões. Para eles, após a morte, a alma humana se transforma em Ỹamῖy (em espírito cantor), que mora no mundo dos encantados, mas que volta ao mundo dos vivos para cantar e dançar com os humanos. Esses espíritos estão relacionados tanto às almas dos próprios mortos como da natureza, pois é possível aprender os cantos com os espíritos dos animais, especialmente dos pássaros, das árvores e dos mortos, esses que por serem imortais são mais sábios e belos que os humanos.

Essa compreensão também está presente em outras culturas, como exemplo na cultura do povo Marubo do Vale do Javari (Amazonas), ao considerar que o seu ancestral, Vimi Peiya, aprendeu a fazer casas, cestarias e a caçar com arco e flecha com os espíritos das sucuris e demais habitantes das águas (Cesarino, 2011) e do povo Kuikuro que, segundo Yamaluy Kuikuro (liderança xinguana), seu povo aprendeu parte de seus conhecimentos com os espíritos das onças, por eles terem parentescos com esses felinos.

O conhecimento de parte da poética do povo Maxakali aconteceu em julho de 2013, quando realizamos (com a participação de docentes e discentes do curso de Pedagogia do Programa Plataforma Freire – MEC do Campus X da Universidade do Estado da Bahia) uma visita a uma das comunidades Maxakalis de Santa Helena de Minas.

A referida aldeia é constituída por trinta e cinco famílias e está instalada no Vale do Mucuri (MG). Seus moradores ainda cultivam o ato de pescar, de plantar roças de mandioca e de milho, além da confecção de artesanatos. Enquanto aguardam o período de colheita de suas lavouras, sem recursos financeiros, buscam trabalhos como assalariados nas fazendas próximas. Quando não há ocupação, algumas famílias peregrinam pelo vale do Mucuri, passando por vários municípios, tendo como rota final a cidade de Teixeira de Freitas (BA). Nesses locais buscam por produtos que não podem adquirir nas cidades que circundam a aldeia, dentre estes as bebidas alcoólicas. Quanto à inserção de bebida na aldeia há várias explicações que não serão abordadas nesse ensaio.

A participação dos Maxakalis no sistema produtivo é limitada por alguns fatores. Dentre eles, a redução dos espaços disponíveis para a prática das atividades econômicas e a política assistencialista dos órgãos do Estado, que ao longo dos anos vem desestruturando a organização social e econômica dos grupos. Outra questão que comprometeu o sistema econômico foi a desapropriação de seus territórios e, quando finalmente conseguiram rever a questão do território indígena, as matas já haviam sido derrubadas para a implementação da pecuária, pois o Estado tinha como perspectiva a incorporação dos Maxakalis no manejo de gados, assim a inadaptação desses grupos na lida com o gado também contribuiu para a sua marginalização.

Os Maxakalis de Santa Helena têm, por hábito, a venda de parte da pequena produção agrícola, de sementes de capim e do artesanato em feiras de cidades próximas da aldeia. Apesar de suas inserções no sistema produtivo regional, não deixaram de serem estigmatizados e avaliados como preguiçosos, sujos, ladrões e bêbados; excluídos socialmente da estrutura regional na qual estão inseridos.

Mesmo diante de todas as coações sociais, políticas e econômicas e dos desarranjos sociais vivenciados, esse povo é identificado como resistentes, principalmente pela preservação da língua indígena (mulheres e crianças só falam em língua maxakali), de seus cantos (no levantamento que realizamos, em pesquisas sobre os cantos maxakalis, contabilizamos 36 cantos) e da implementação da educaçao escolar diferenciada e específica.

Helânia - 18-05-2016

Jovens Maxakalis no pátio da aldeia

Os Maxakalis apresentam seus cantos na língua nativa, esses vivenciados nos diferentes espaços da aldeia. Na visita observamos que as crianças sabem muitos cantos. Por meio dos cantos, falam da fauna, flora, de seus conhecimentos sobre anatomia, biologia, da vida e da essência humana. Para esse povo os cantos tem uma grande importância, pois são propagadores de conhecimentos ancestres adquiridos pela tradição oral. E quem conhece e canta é como guardião desses saberes milenares. O canto funciona como um código cultural que possibilita a conexão entre o passado e o presente. E um canto é, ao mesmo tempo, um espírito que deve ser cuidado e o seu conhecimento transmitido entre gerações.

Cantar para esse povo é uma das formas de pensar o mundo, nomear, descrever e falar das ações humanas e sobrenaturais (às vezes pelas vozes dos espíritos, que são registradas em forma de onomatopeias). Como exemplo, o canto do zabelê é iniciado com o lamento da ave, assim registrado: “diodioidiodioi o ooooo o ooo e o e o eo o e oi o e oi e oi e oi” que anuncia a sua partida para um lugar que o humano não pode ir“[…] vou embora, vou embora; vou embora com saudade, quando chegar, quando chegar, com saudade vou deitar […]” (canto do zabelê, traduzido por pesquisadores).

Os cantos são vistos como enunciados essenciais para o desenvolvimento dos sujeitos, na medida em que contribuem para a compreensão de si e do outro. Para cantar e receber visitas, pintam os rostos com urucum. Ao perguntarmos por que estavam pintados, responderam que assim se pintavam para ficarem bonitos para os visitantes.

Helânia (2) - 18-05-2016

Crianças em organização para nos apresentar alguns cantos

Vale ressaltar que as músicas sertanejas e o forró são muito apreciados por eles, por isso investem na tradução desses gêneros musicais na língua nativa, o que tem impulsionado a especialização de cantores Maxakalis e a criação de bandas também nesse universo musical.

#cultura#indígenas#Maxakali

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