Mídia e Maioridade Penal

26 de março de 2015 Processocom

Tamires Coêlho

Os acontecimentos das editorias de polícia dos meios de comunicação estão entre as que mais chamam a atenção dos leitores, seja porque falam da insegurança vivenciada no Brasil todos os dias, seja porque trazem casos de grande repercussão envolvendo assaltos, sequestros e mortes, mostrando do que o ser humano é capaz e despertando curiosidade (por vezes mórbida). No entanto, olhando mais atentamente ao discurso midiático, percebemos que há um tratamento diferenciado, a depender do contexto em que se enquadram vítimas e criminosos: dificilmente observamos um caso envolvendo infratores em condição de pobreza no qual a vítima já não seja condenada pelo próprio veículo de comunicação, bem como dificilmente vemos um caso que envolva criminalmente profissionais de classe média ou alta em que a acusação não seja meticulosamente construída, até que se prove o contrário.

Esse tratamento midiático “ao sabor dos acontecimentos”, sobretudo ditado pelo “status” dos envolvidos e desvencilhado muitas vezes de uma reflexão ética sobre o fazer jornalístico, tem dado destaque também aos crimes praticados por menores, sobretudo moradores de periferias, contribuindo, de maneira tendenciosa e deturpada, para a emergência de temas como a redução da maioridade penal, atualmente bastante discutida pelo legislativo brasileiro.

O editorial denominado “ECA não recupera menor infrator e desprotege sociedade” (Globo.com), publicado em 15 de fevereiro de 2015, traz dados como o fato de o estado do Rio de Janeiro apreender “a cada 60 minutos uma criança ou adolescente por infração criminal” e que “o número de jovens infratores levados em 2014 ao Ministério Público ou ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Novo Degase), quase 8,4 mil, triplicou em relação a 2010”, destacando a ligação com o tráfico de drogas e a prática de roubos e furtos. Isso para defender que o Estatuto da Criança e do Adolescente está defasado e que há impunidade a esses jovens que ficam cada vez mais violentos e perigosos: “quando muito, recebem pequenas punições, cumpridas as quais ficam livres para reincidir em crimes, cada vez mais graves pelo estímulo de uma legislação que destoa da vida real. O país precisa ter a coragem de contemplar mudanças cruciais, como a redução do limite de inimputabilidade, de modo a adequar o ECA aos novos tempos” (Globo.com). Embora o Globo tenha dito que o debate em seu editorial “exclui paixão e ideologias, à luz dos interesses de toda a sociedade”, a quem interessa a redução da maioridade penal no Brasil? Que novos tempos são esses em que adolescentes (que não têm noção completa da consequência de seus atos) devem ser punidos como se pensassem ou tivessem a maturidade alcançada na fase adulta?

Notamos que não há uma discussão midiática perpassando questões sociais ou educacionais importantes na chegada desses jovens às infrações e ao mundo do crime, como se o fato de reduzir a maioridade penal fosse uma solução simples, eficaz e acertada. Não é nosso objetivo defender qualquer tipo de violência o crime praticado por menores de idade… mas o que leva uma criança ou adolescente ao envolvimento com tráfico de drogas, ou com roubos, ou ainda a realizar crimes com requinte de crueldade (como muitas vezes foi mencionado no próprio Globo.com)?

É comum ver os meios desfechando suas matérias com o encaminhamento do jovem a um abrigo, à Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA) ou até mesmo à liberação. Como são esses abrigos e que tipo de tratamento dispensam aos jovens? Como a delegacia especializada aborda seus casos e treina seu pessoal interno? Quando liberados, para onde retornam esses jovens (se têm família, abrigo ou acolhida)? São perguntas não respondidas nem exploradas pelos jornalistas. Afinal, quem tem interesse em ler sobre o destino de “criminosos”, “marginais”, “trombadinhas”? Quem tem interesse em saber de onde vieram, como foram criados ou com base em quais valores? O discurso superficial transmitido pela mídia, em suas produções diárias, informa ou deforma acontecimentos?

A posição da Unicef contra a redução da maioridade no Brasil leva em contra justamente que os jovens são mais vítimas de assassinatos que responsáveis por crimes, além de fazerem parte de um contexto e de um perfil bem definido: “Mais de 33 mil brasileiros entre 12 e 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Se as condições atuais prevaleceram, outros 42 mil adolescentes poderão ser vítimas de homicídio entre 2013 e 2019. As vítimas têm cor, classe social e endereço. Em sua grande maioria, são meninos negros, pobres, que vivem nas periferias das grandes cidades. Estamos diante de um grave problema social que, se tratado exclusivamente como caso de polícia, poderá agravar a situação de violência no País”.

Parece-nos que o discurso da mídia destrincha o que é conveniente, ou que é mais fácil, afinal, não leva em conta a condição das vítimas-infratoras (com características bem definidas) ou de suas famílias. É um discurso que por vezes condena vítimas de um sistema opressor, que não tiveram oportunidades, comparando-as com as exceções que deram certo, com os meninos pobres que conseguiram ser médicos, advogados etc., mesmo sem condições materiais. A mídia esquece, ou não vê, que é difícil (sobre)viver nas condições em que várias dessas vítimas-infratoras crescem, acostumadas a dormir com o barulho de tiroteios, frequentemente interpeladas agressivamente por traficantes ou policiais, para quem suas vidas pouco valem. Nesse contexto, há muito pouco a perder.

Assim, condenar esses adolescentes sumariamente ou tentar “reintegrá-los” aos moldes do que ocorre hoje nas instituições voltadas para menores não funciona, porque é desumano punir alguém que é inimputável (seria como condenar alguém com Mal de Alzheimer ou como condenar uma criança) e torna-se impossível querer reintegrar indivíduos que já nasceram socialmente desintegrados, à margem de direitos imprescindíveis à formação do ser enquanto sujeito.

Referências:
Eca não recupera menor infrator e desprotege sociedade

Redução da maioridade penal é rebatida por Unicef

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