Série “Saberes Populares”: Natureza,tradição e cultura imbricadas em práticas com manivas – Mestras amazonenses compartilham saberes em Minas Gerais

17 de maio de 2014 Processocom

Tamires Coêlho

As mestras Maria Eugênia Batalha e Margarida Meireles saíram da região do Médio Solimões (Amazonas) para Minas Gerais especialmente para compartilhar conhecimento conosco na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No dia 14 de março elas nos presentearam compartilhando seus conhecimentos sobre o plantio de mandiocas, sobre a fé, as crenças e os costumes da região de Nogueira e de Tefé-AM.

Dona Maria Eugênia desde pequena, quando foi criada pelo avô, teve contato com a mandioca. Aos 7 anos de idade ela já aprendia a lidar com o plantio e os diversos tipos de “manivas” (plantas das quais se colhe a “batata” denominada mandioca) que tinham em sua região. A mandioca, mais que um alimento sustentável, é a base alimentar do povo que habita o entorno da região de Tefé e também é a base das comidas típicas feitas para os “Festejos de Maio”, quando ocorrem festas santas na comunidade.

Tanto Dona Maria Eugênia quanto Dona Margarida moram em Nogueira, de onde o acesso à cidade de Tefé se dá por meio de “catraias” (embarcações motorizadas), de barcos a remo ou de automóveis. Hoje, naquela região, a venda e troca da produção derivada da mandioca estão cada vez menores e a relação com o dinheiro aumenta: já come-se mais do “comprado” e menos do que se planta nas “capoeiras” e nos roçados, embora ambas mestres tenham sido criadas na tradição de famílias com forte vínculo à terra. Mesmo com uma relação mais forte com o dinheiro e com os alimentos que vêm de fora, a família ainda é a unidade do consumo e da produção de farinha: as crianças desde cedo ajudam no ciclo das roças e da farinha.

Antigamente não se comprava nenhum tipo de comida e as refeições eram à base da farinha produzida nos roçados familiares, do peixe pescado no rio Solimões e da carne proveniente da caça. O pai de Dona Maria Eugênia usava um facho de lamparina denominado “piraqueira” durante a noite para pescar peixes utilizando a mira. Tudo que era pescado era dividido entre as famílias da comunidade e o mesmo acontecia quando alguém voltava da caça trazendo animais como “caititu” e “queixada” (espécies de porcos selvagens). Hoje os moradores não caçam mais e compram a carne no Mercado Central de Tefé. Embora alguns desses animais destruam muitas vezes as plantações de manivas, prevalece o respeito à natureza: a ideia de que a terra é dos animais e de que os humanos é que invadem seu espaço.

Na região, as famílias possuem até 10 “capoeiras” (pequenos pedaços de terra) que são revezadas para a produção de manivas sem exaurir o terreno e sem esgotar seus nutrientes. As várzeas (áreas alagadiças) a produção de manivas é sincronizada ao ciclo das águas, para que a plantação não fique submersa nas épocas de chuva intensa.

Na comunidade de Nogueira é comum encontrar as pessoas comendo suas refeições sentadas no chão. A farinha de mandioca, o caldo de peixe, o “tucupi” (baseado na massa de mandioca espremida no “tipiti”) são comidas bastante comuns na região. Há também a “manicoeira” (mingau de banana no tucupi da mandioca) e o suco da macaxeira dentre a vasta cozinha alternativa comum naquela comunidade. Depois das rezas é costume também servir uma gemada com canela e o chocolate caseiro.

A maniva que origina a mandioca é diferente da que origina a macaxeira: as mestras explicaram que a primeira é utilizada para fazer farinha, goma, biscoitos, polvilho, sequilhos etc., enquanto a segunda serve de alimento (podendo ser cozida ou frita), serve para fazer farinha branca e bolo. Dona Margarida ainda explicou que há muitos tipos de mandioca e que para cada uma existe uma época de colheita específica.

As lendas da região são bastante peculiares e há até hoje uma crença muito forte nelas, no poder de criaturas mágicas e místicas. A mais famosa é a lenda do boto, que em determinadas noites se materializa e se veste como ser humano e sai para dançar.A época do cio do boto é chamada de “vadiação” e há o perigo de ele carregar moças para o fundo das águas do Solimões. Além do boto há também lendas ligadas a seres encantados como o “Curupira”, o “Matintim” e a “Mãe da Roça”. Além das lendas, há também as “simpatias” bastante comuns, como com o “fiapo da mandioca” para curar dores de cabeça.

Dona Margarida e Dona Maria Eugênia explicam a professores e pesquisadores sobre as técnicas e processos produtivos das manivas e falam da cultura na região do Médio Solimões

Dona Margarida e Dona Maria Eugênia explicam a professores e pesquisadores sobre as técnicas e processos produtivos das manivas e falam da cultura na região do Médio Solimões

 

Muitos cânticos antigos da comunidade foram perdidos, inclusive os que eram entoados durante o processo de plantio e colheita da mandioca, durante as festas religiosas típicas. No entanto, muito da cultura das manivas sobrevive hoje porque as mudas das plantas foram passadas de geração para geração nas famílias, não deixando que algumas variedades acabassem.

A forte influência de hábitos e crenças ligadas ao cristianismo não são mero acaso: no período colonial, a região de Tefé (então limite entre os territórios português e espanhol pelo Tratado de Madrid) foi ocupada por missões portuguesas que tinham bastante influência na região, habitada por tribos indígenas. Essa influência religiosa persiste até hoje com práticas como “os mastros das novenas” (Mastro do Divino levantado no dia da Ascensão ao Senhor) e a comemoração dos festejos de Pentecostes. Além da igreja católica estão chegando igrejas evangélicas na comunidade. Por outro lado, crenças de origem indígena ainda sobrevivem como o hábito que muitos moradores da região, como Dona Margarida, têm de pegar uma cuia com mandioca para fazer a cruz nos pés na roça, depois tomando tacacá (mingau de goma de tapioca que pode ter sal, banana, jambú etc.) e ficam com os pés esticados em cima da terra para a mandioca crescer. As próprias bebidas a base de macaxeira como o pajuarú são heranças indígenas ainda muito fortes na região. Papéis sociais como os de “rezadores populares” e de parteiras estão desaparecendo aos poucos, embora ainda sejam possíveis de ser encontrados: dona Maria Eugênia era parteira até pouco tempo atrás e dona Margarida ainda exerce essa função.

O senso de coletividade, apesar de ter diminuído, ainda nos surpreende: mesmo em um lugar em que o sinal do celular costuma “desencantar” de vez em quando, é possível aglomerar pessoas em mutirões, acompanhar uma ajuda mútua e desinteressada entre as pessoas da região – geralmente em torno dos processos ligados às manivas. É a natureza apropriada pelo ser humano ajudando-o a manter vínculos, laços e a perpetuar tradições.

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