História e sincretismo nos quilombos mineiros – Um encontro com Mãe Tiana de Oxossi e Seu Badú
10 de maio de 2014 Processocom
21 de fevereiro de 2014. Os primeiros mestres convidados para o Seminário “Encontro de Saberes: Conhecimentos Tradicionais e Conhecimentos Científicos” foram Mestre Tiana e Mestre Badú, do Quilombo “Carrapatos da Tabatinga” (Bom Despacho-MG) e do Quilombo Mato do Tição (Jaboticatubas-MG), respectivamente. Embora inicialmente bastante contidos em suas falas, os mestres foram relaxando aos poucos e falando mais abertamente sobre sua cultura, sua rotina, suas dificuldades, suas peculiares comunidades quilombolas.
A timidez já era esperada, afinal o campus da maior universidade do estado onde eles moram não é um lugar eminentemente ocupado por minorias nem era acessível a mestres não acadêmicos [até então]. Eles estavam acompanhados de familares que também são lideranças políticas, como Marilene, sobrinha de Seu Badú e presidente da Associação de Moradores do Quilombo Mato do Tição, e como duas filhas de Dona Tiana – entre elas Sandra, que é presidente da Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais.

Dona Tiana fala à comunidade universitária sobre sua história, apoiada no instrumento musical que trouxe de sua comunidade.
Quilombo Mato do Tição
A luta da pequena comunidade Mato do Tição, diante de constantes ameaças de fazendeiros que planejam invadir suas terras, fez com que alguns quilombolas passassem a andar armados – não sabemos se há permissão legal ou não para isso [lembremos também que o aparato legal não oferece praticamente nenhuma segurança ou garantia aos direitos quilombolas]. A audácia dos latifundiários da região chegou ao ponto de os animais desses fazendeiros serem colocados sem permissão para pastar em terras quilombolas. Atualmente 16 famílias dividem um espaço de 30 mil m² baseado em agricultura familiar, de pequeno porte, no Mato do Tição, dentre constantes ameaças de fazendeiros que queimaram e ocuparam boa parte das terras da região, deixando pouca mata nativa. Outros quilombolas, que passaram a morar fora da comunidade, costumam retornar em tempos de festas típicas.
Seu Badú nos falou com orgulho do aprendizado que teve com seus pais e que hoje reproduz em um programa de uma rádio local, no qual fala da necessidade de preservação da natureza, de homeopatia, de propriedades medicinais das plantas e de tratamentos naturais e místicos para diversos males. Ele foi um dos doze filhos criados em uma pequena casa e começou a trabalhar aos sete anos de idade. Sua tia, Constantina dos Santos, viveu 126 anos e foi uma das muitas escravas vendidas pela região, que transitou entre senzalas em uma época na qual os negros ou morriam de fome ou habitavam a mata após a abolição. Nessa retrospectiva nos chamou atenção o discurso colonizador ainda presente em falas do Mestre Badú como “pelo menos na senzala eles eram alimentados”… como se a escravidão de alguma forma pudesse ser justificada ou configurar-se como o “menor dos males”. É notório que essas falas emergem inconscientemente e ainda persistem em muitos discursos, mesmo de personagens símbolos de resistência.

Seu Badú (em pé) fala do poder das plantas, da omeopatia e do pêndulo na solução de problemas e doenças.
A capela da pequena comunidade é utilizada não somente para oração, mas também em momentos de reunião dos quilombolas para tomada de decisões, para organização de festas e para ensaio com instrumentos de matriz africana. A ocupação diversificada da capela é um dos momentos de sincretismo religioso característico dessa e de outras comunidades, como também a de Dona Tiana. A devoção a Nossa Senhora, o terço, as festas de bandeiras de santos, a folia de reis e as rezas comunitárias são feitas muitas vezes ao som de tambores e outros instrumentos trazidos ou adaptados por seus antepassados. São festas religiosas de tradição católica que dão lugar a danças de recordação do passado, como o Candombe, que resgata alegria, história e memória dos antepassados negros. No Mato do Tição, tradições do Catolicismo e da Umbanda se mesclam de maneira singular.
Quilombo Carrapato da Tabatinga
Dona Sebastiana ou Dona Tiana, é uma “Dandara Velha” [como ela se autodenominou] de 82 anos, mas com uma disposição que nos enche de alegria e impressiona. É filha de José Ribeiro e Maria Imaculada Ribeiro e é a grande mestre de um quilombo que sobreviveu ao Massacre dos Macacos, em Bom Sucesso-MG, cidade onde ela nasceu. A região de Bom Sucesso onde eles moravam ficava entre duas grandes fazendas de poderosos latifundiários [uma história que por vezes se repete]. Os fazendeiros decidiram exterminar os negros [carrapatos] que viviam ali e promoveram um grande massacre do qual Dona Tiana sobreviveu porque seu tio-avô jogou [literalmente] a família dentro de um buraco na terra, que lhe serviu de esconderijo. Quando os fazendeiros julgaram que seu extermínio estava concluído, a família de Dona Tiana ainda estava escondida e sobreviveu de água tirada de mandacarus, de batata [tabira] e de pequenos animais caçados na mata. Posteriormente, Dona Tiana e seu irmão teriam seu acesso aos estudos negado pelo dono da fazenda em que eles e seus pais trabalhavam, ainda sob um regime mais escravo do que livre.
A comunidade do Carrapato surge, desde o início em um lugar marcado de resistência, o que também interfere em seus rituais e em suas manifestações culturais. Essa resistência se mostra também na negação do papel “abolicionista” da Princesa Isabel e na exaltação dos antepassados africanos, infelizmente mostrados apenas como “escravos” nos livros didáticos, com nenhuma profundidade sobre a origem sociocultural daqueles sujeitos.
Se a luta pela terra é empreitada dos mais velhos, a parcela mais jovem da comunidade é atraída pelos cantos, pelos movimentos de danças e rituais. Do samba à capoeira e ao Moçambique, a comunidade é nutrida pelos sons de tambores e atabaques tocados em festas que mesclam catolicismo, umbanda e espiritismo. Dona Tiana é uma mistura de médium vidente, de devota, de Zeladora de Santo (São Sebastião ou Oxossi) e de Capitã da Guarda de Moçambique na comunidade.
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Mãe Tiana de Oxossi acredita em destino, em missão, no amor que faz render o trabalho de uma vida inteira, na “sabedoria que vem do coração”, na dança que traz energia ao seu corpo disposto. Seu Badú, para além do sincretismo religioso e das correções no ensino do Candombe, que tem de “ser cantado direito”, acredita em um misto de ciência, onda e vibrações, nas conversas místicas com um pêndulo. Seu Badú nos ensinaria muito mais em um outro encontro algumas semanas depois, quando visitamos sua comunidade. Dona Tiana, prevendo a despedida, nos encantou com seu canto e com seus batuques ritmados… numa batida que alegrou a alma! Os batuques de Dona Tiana – meio africanos, meio brasileiros, demasiadamente sincréticos – embalaram minha mente durante todo aquele fim de semana…