A Política de Ciência e Tecnologia precisa ser repensada

25 de abril de 2011 Processocom

Fonte: Tribuna do Norte de 17.04.2011

Miguel Nicolelis quer levar a ciência para as ruas. Nos sonhos do neurocientista, as conversas dos brasileiros, nas ruas, nos bares, nas esquinas, oscilariam entre a última partida da seleção brasileira de futebol e… ciência. Parece impossível? Não para o neurocientista. Empenhado desde 2006 em um projeto que alia pesquisa de alto nível e educação científica para crianças de periferia, Miguel Nicolelis acredita que o caminho de desenvolvimento econômico e social do Brasil passa por uma “ciência comunitária”, acessível a todos.

Em entrevista à TRIBUNA DO NORTE para o projeto Motores do Desenvolvimento do Rio Grande do Norte, Miguel Nicolelis fala sobre o trabalho em Natal, a Comissão do Futuro – grupo de pesquisadores que irá discutir o futuro da ciência e inovação tecnológica no Brasil – e o projeto “Walk again”, que poderá fazer um adolescente tetraplégico andar a partir de uma veste robótica na abertura da Copa do Mundo de 2014.

Como o senhor avalia o trabalho realizado em Natal até então?

Sem dúvida, eu estou bastante satisfeito, se não estivesse faria alguma coisa para mudar. Pelo grau de dificuldades que nós enfrentamos desde o começo e enfrentamos até hoje, conseguir dar seguimento em um nível tão alto às atividades do cotidiano realmente me deixa bastante satisfeito.

Os investimentos por parte do governo do Estado foram regularizados?

Nós estamos esperando. O novo Governo se manifestou favorável a regularizar todas as pendências, então nós estamos à espera dessa regularização.

O dinheiro não foi repassado ainda?

Ele está sendo repassado. A primeira parcela já foi paga e nós estamos esperando a confirmação das próximas parcelas. Mas eu não sei de cabeça qual o valor de cada parcela.

Recentemente o senhor foi nomeado presidente da Comissão do Futuro, criada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia para discutir o futuro da ciência e inovação tecnológica no Brasil. Existe uma data para a primeira reunião com os pesquisadores?

A data foi sugerida ao Ministério da Ciência e Tecnologia e nós estamos esperando a regulamentação do regimento da Comissão. Ainda é preciso que o Ministério operacionalize o nosso pedido de orçamento para organizar essa primeira reunião. Mas a data já foi sugerida para o Ministério, mas não podemos confirmar nada até a resposta. Tudo o que poderia ser feito em relação a isso da nossa parte foi feito.

O que vai ser discutido nessa primeira reunião?

Não tenho liberdade para falar publicamente sobre isso ainda. Mas já foi planejado com o ministro Aloízio Mercadante o teor da reunião. Contudo, até que o próprio Ministério aborde o assunto, eu não posso adiantar nada.

As dificuldades que os pesquisadores enfrentam para aquisição de equipamentos, reagentes e material devem entrar na pauta da Comissão ainda neste primeiro ano?

Sem dúvida. Esse é um dos itens. Mas não é o maior problema. É o problema que recebe maior atenção da imprensa, mas não é o maior certamente, embora seja uma questão estratégica que precisa ser estudada e resolvida de uma vez. Por isso, sem dúvida nenhuma faz parte da nossa pauta.

Quais são os maiores entraves para que esses equipamentos e produtos demorem tanto para chegar e sejam tão caros?

Para entender isso, é só ir às ruas e olhar o Brasil. Nós somos um grande cartório para tudo. Então, é o sistema operacional que não evoluiu com o tempo, com a modernidade. Infelizmente, é um sistema arcaico, arcano, e é algo que os países líderes em produção científica no mundo inteiro já resolveram há muito tempo.

Como o senhor avalia a política de Ciência e Tecnologia no Brasil?

Novamente, eu acho que é algo que precisa ser repensado, visando um projeto estratégico a longo prazo e à popularização da ciência, da prática científica por parte da juventude, democratização dos meios de produção da ciência, melhoria da distribuição dos recursos existentes, melhoria da formação dos cientistas brasileiros e também um apoio mais concreto e mais contínuo. Um apoio que não deixe o cientista brasileiro vivendo continuamente nessa incerteza se vai haver ou não apoio, suporte e uma visão estratégica a longo prazo.

Em relação à democratização, o senhor comentou recentemente no twitter: “A ideia é criar um modo comunitário de fazer ciência”. Como seria isso?

Se você levar a educação científica e a prática da ciência, como uma atividade lúdica, desde os primeiros anos da formação e educação e isso se transformar em algo tão comum quanto a criança jogar futebol no recreio, você cria uma visão comunitária. Isso porque as crianças passam a ter a ciência como algo importante na vida delas, que faz parte do cotidiano, as famílias vão entender a relevância da ciência na vida de todos nós e vão querer poder participar dos meios de produção e da geração do conhecimento de ponta e consumo desse conhecimento e tecnologia de ponta. Então, você realmente precisa trazer a ciência para o diálogo dentro das casas das pessoas, do cotidiano dos indivíduos e não simplesmente restringir a um número pequeno de pessoas nas universidades. Ciência no Brasil precisa ser feita em todos os ambientes possíveis e não só nas universidades públicas.

O projeto de educação científica realizado aqui é uma semente disso?

Sem dúvida. É algo que estamos tentando levar para o Brasil inteiro porque desde o início a intenção era massificar a idéia por todo o país.

O senhor costuma conversar com todos os alunos das escolas de educação científica em Natal. Como é essa conversa? Qual o feedback das crianças?

Eu tento passar que o cientista é uma pessoa normal, uma pessoa como eles, com uma história de vida como qualquer outra pessoa e que faz ciência por prazer. Eu tenho interesse em falar, gosto de falar sobre essas coisas e tento criar com essa aula um diálogo, de maneira que eles possam se expressar também, dar opinião, comentar sobre o tipo de ciência que eu faço, as coisas de neurociência que eu me interesso. É um espaço para perguntar também o que eles sonham fazer na vida, qual o caminho que eles querem trilhar.

O senhor sempre se refere à palavra sonho quando fala nesse projeto e em outros. É uma palavra importante para definir esse trabalho?

Sim, porque a construção de uma utopia, a construção de um sonho, é a grande motivação de qualquer indivíduo. É muito difícil viver a vida inteira sem ter um sonho, porque a ausência dessa utopia faz a vida muito difícil. O fato de querer realizar alguma coisa que parece quase impossível ou maior do que a nossa rotina faz com que nos levantemos da cama todos os dias e trabalhar com outro vigor, outro interesse na vida. Então, o sonho é fundamental não somente para qualquer projeto educacional, como também para a vida de qualquer um de nós. Na minha opinião, é um dos elementos essenciais da vida de uma pessoa.

A sua utopia é conseguir usar a ciência para transformar a vida das pessoas?

É, a minha utopia é ver um outro país. Um país diferente, mais justo, democrático de verdade. E, na minha área específica, que os meios de produção de ciência e tecnologia sejam populares, distribuídos por toda a sociedade e que possam trazer felicidade para as pessoas.

Em relação ao projeto “Walk Again” [andar novamente, em inglês], o senhor falou recentemente sobre a possibilidade de fazer um adolescente tetraplégico andar controlando uma veste robótica somente com o pensamento. Esse projeto já está em andamento?

Esse consórcio já existe, está atuando há mais de dois anos e está sendo reforçado. Eu já escrevi sobre isso nos Estados Unidos e na Europa, mas agora quero fazer uma ação sobre isso aqui no Brasil, que seria fazer essa demonstração com um adolescente brasileiro na abertura da Copa do Mundo. Essa é uma das ações que eu gostaria de apresentar ao Governo Brasileiro.

O senhor pensa em voltar ao Brasil por conta desse projeto?

Sim, sem dúvida, eu tenho interesse de voltar a morar no Brasil, talvez não agora, mas no futuro. Não somente pelo projeto. Certamento, caso essa proposta seja aceita, eu vou precisar passar mais tempo no Brasil, mas no futuro, num certo momento da minha carreira, quando eu julgar que é possível eu vou transferir boa parte das minhas atividades de pesquisa para o Brasil, ou pelo até a totalidade delas.

O senhor considera possível fazer acontecer esse projeto aqui no Brasil da mesma forma como seria nos Estados Unidos, na Universidade de Duke?

Sim, se os mecanismos de apoio que existem nos Estados Unidos e na Europa forem oferecidos aqui no Brasil, com certeza será possível. Essa possibilidade é real, mas precisa de uma decisão política. Houve uma decisão política para gastar dinheiro público em estádios de futebol para a Copa do Mundo. Seria uma decisão pública, política, da mesma esfera se apoiar um projeto emblemático que levaria o nome do Brasil a um outro patamar na ciência mundial. É o mesmo tipo de decisão. Se o Brasil pode construir estádios de futebol gigantes que não necessariamente terão alguma função depois da Copa do Mundo, ele pode investir um valor ínfimo, comparado com esses investimentos em estádios, para criar uma demonstração que vai levar o Brasil a um outro grau de credibilidade científica. Essa é a minha visão.

As bases técnicas e científicas para se fazer essa demonstração já existem?

Sem dúvida. O Instituto de Natal é um dos alicerces para isso, mas existem outras estruturas no Brasil que poderiam ser agregadas e recrutadas para servir de base para a realização desse projeto.

Esse tipo de demonstração já foi feita em algum lugar do mundo?

Não. Nesse nível de complexidade não.

Seria algo semelhante à experiência com uma macaca nos Estados Unidos movendo com a força do pensamento um robô no Japão?

Exato, mas esse que eu estou falando é com um ser humano e movendo um corpo muito mais complexo que o robô que tínhamos no Japão naquela época. Precisamos de alguns anos de pesquisa para chegar a essa complexidade, mas temos consciência que é algo possível nesses três anos e meio que falta para a abertura Copa do Mundo.

Diante de toda essa questão da democratização que o senhor fala, é uma atuação diferente do que o Brasil está acostumado e esperar de um cientista. Como é a recepção das pessoas a isso?

Não é costume mesmo. As pessoas da sociedade, a grande maioria, apóia. Acho que alguns cientistas ainda têm uma certa resistência porque não estão acostumados ou acham que não é esse o papel de um cientista. Mas essa é uma questão pessoal deles.

Na opinião do senhor, por outro lado, esse é o papel fundamental do cientista?

Eu acho que é um papel fundamental porque boa parte do que nós fazemos é com dinheiro da sociedade. Então, a sociedade tem o direito de entende melhor o que faz um cientista, como trabalha, etc. E não tem nenhum segredo ou mistério. Nós precisamos desmistificar esse posição, porque fazendo isso nós aproximamos a sociedade e a sociedade passa a ver com melhores olhos a atividade de um cientista.

O senhor acha que a sua visão de mundo, de tentar contribuir com o país, tem uma relação com o fato de ter precisado sair do Brasil para fazer ciência?

Da minha parte, sem dúvidas. Esse foi um dos sentimentos que motivou voltar para o Brasil e iniciar os projetos em Natal. Amanhã eu dou uma aula na USP (Universidade de São Paulo), onde eu me formei, o que também me traz uma sensação muito boa. Depois de 32 anos, é muito bom.

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